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Especial O Ministério da Saúde e o PNI | O enfrentamento da epidemia de Aids no Brasil

14 ago/2023

Eliza da Silva Vianna​ (Ifal)*

 
 

A epidemia de HIV/Aids chegou ao Brasil em um momento bastante peculiar de nossa história recente: o processo de redemocratização que pôs fim à ditadura militar. Nesse sentido, pensar a relação entre o Ministério da Saúde, ou seja, as políticas públicas em âmbito federal e o enfrentamento do que na época era uma nova e desconhecida doença, perpassa necessariamente colocar em evidência a retomada dos movimentos sociais no país.

Nas décadas de 1970 e 1980 ganha força o movimento sanitário com propostas de democratização do setor saúde, com participação popular, a universalização e descentralização dos serviços e a defesa do caráter público do sistema de saúde. Dessa mobilização resultou a garantia da saúde como um direito de todos e um dever do Estado, presente na Constituição brasileira promulgada em 1988, e a formulação do Sistema Único de Saúde (SUS), implementado a partir de então.

Conforme afirmou o documento que normatizava as diretrizes para as políticas nacionais das então DST/Aids no final dos anos 1990, “a luta contra a Aids no Brasil criou bases para um novo tipo de relação entre o Estado e a sociedade” (MS, 1999, p. 8). A pressão dos movimentos sociais institucionalizados em organizações não governamentais como o Grupo de Apoio à Prevenção à Aids (Gapa), criado em São Paulo em 1985; o Grupo Pela Valorização, Integração e Dignidade do Doente de Aids (Grupo Pela Vidda), criado no Rio de Janeiro em 1989; o Grupo de Incentivo à Vida (GIV), a Associação Brasileira Interdisciplinar de Aids (Abia), entre outros, foi fundamental para a implementação das políticas públicas de combate à epidemia.

Uma das importantes conexões entre o processo de redemocratização do Brasil e o enfretamento da Aids se expressa na figura de Herbert Daniel, um dos principais ativistas dos primeiros anos da epidemia. Como destacou o historiador James Green na biografia do “revolucionário e gay” (2018), militante de diversos grupos políticos durante a ditadura militar, Daniel foi o último exilado a poder retornar ao país após a Lei da Anistia, em 1981, protagonizando ao longo da década 1980 a luta contra a Aids, participando da fundação do Partido Verde, da Abia e do Grupo Pela Vidda.

Não se trata, portanto, de coincidência que o Gapa, grupo pioneiro no combate à epidemia e ao preconceito a ela circundante, e o Programa de Controle da Aids compartilhem o ano de fundação, sendo ambos criados em 1985 (Contrera, 2000; Brasil, 1985). Considerada uma primeira e tímida resposta do governo federal à enfermidade que trazia cada vez mais vítimas e preconceito devido à transmissão por via sexual e à presença de casos em homens homossexuais, foi seguida pela criação da Comissão de Assessoramento em Aids e do estabelecimento da notificação compulsória da doença, por meio da Portaria Ministerial nº 542/86 (MS, dez. 1986). Em 1988, é criado no âmbito do Ministério da Saúde o Programa Nacional de Aids, cujas primeiras ações dedicaram-se à divulgação de informações, prevenção e vigilância epidemiológica.

Embora profícua, a relação entre Estado e movimentos sociais não foi pacífica ou mesmo estanque, contribuindo para a atmosfera efervescente que acompanhou o processo de formulação e implementação do SUS, desde a Reforma Sanitária e a 8ª Conferência Nacional de Saúde. Conforme destacou Nascimento (2005), as primeiras campanhas de prevenção realizadas pelo Ministério da Saúde enfatizavam o caráter mortal da doença naquele momento da epidemia, reforçando preconceitos e a atuação das ONGs foi de suma importância inclusive na elaboração de materiais posteriormente incorporados nas ações oficiais.

Durante a década de 1990, o surgimento dos medicamentos antirretrovirais representou uma mudança significativa no curso da epidemia, consistindo na primeira terapia realmente eficaz para a doença. Na ocasião de seu anúncio, na Conferência Internacional da Aids, realizada em Vancouver em 1996, a então diretora do Programa Nacional de DST/Aids, Lair Guerra, se pôs a negociar os custos dos remédios com as empresas farmacêuticas enquanto ativistas se manifestavam exigindo preços mais baixos. Cueto e Lopes (2021) destacam que a contestação e a negociação foram a tônica do PNDST/Aids, de modo que, após a conferência, houve intensa mobilização do ativismo brasileiro exigindo do governo o acesso aos novos medicamentos. Em novembro daquele ano o governo federal sancionou a Lei nº 9.313, que garantiu a distribuição gratuita de toda a medicação necessária ao tratamento de HIV/Aids pelo SUS (Brasil, 13 nov 1996).

Esse marco representou uma mudança significativa no curso da epidemia deslocando os esforços da prevenção para o tratamento e, embora tenham surgido novos obstáculos como a pauperização e interiorização da doença (Biehl, 2011) e as negociações com a indústria farmacêutica ao longo dos anos 2000, o Brasil se tornou referência mundial no tratamento de HIV/Aids (Barros, 2018).

Ao longo dos anos 2000, o Ministério da Saúde protagonizou disputas internacionais com as indústrias farmacêuticas no âmbito da Organização Mundial do Comércio, que resultaram na quebra da patente do medicamento Efavirenz em 2007, sob a liderança do então ministro José Gomes Temporão, durante o primeiro governo Lula (Cueto e Lopes, 2021).

Apesar da diminuição dos recursos do Banco Mundial após o surgimento das terapias antirretrovirais, o Brasil manteve seu programa de combate ao HIV ao longo das décadas de 2000 e 2010. Além de novos medicamentos, foram implementadas novas tecnologias como a Profilaxia Pós-exposição (PEP), o teste rápido, a Profilaxia Pré-exposição (PrEP) e a compreensão Indetectável igual a Intransmissível (I = I), que compõem as atuais estratégias da prevenção combinada.

Contudo, nos últimos anos o Brasil viveu um período político bastante difícil sob o governo de extrema direita de Jair Bolsonaro que, entre tantas medidas prejudiciais à saúde pública – principalmente durante o contexto da pandemia de covid-19, a partir de 2020 – extinguiu o Departamento de Infecções Sexualmente Transmissíveis (IST), Aids e Hepatites Virais (Decreto nº 9795/2019), incorporando-o ao Departamento de Doenças de Condições Crônicas e Infecções Sexualmente Transmissíveis. Na ocasião, diversos setores da sociedade civil se posicionaram considerando a ação um ataque ao histórico programa brasileiro de enfrentamento à doença (Abia, 22 maio 2019). Em janeiro deste ano de 2023, o Ministério da Saúde, sob o comando de Nísia Trindade, iniciou o processo de reestruturação do departamento.

As consequências do período de negligência foram contabilizadas no recém-publicado relatório da Unaids (Programa Conjunto das Nações Unidas sobre HIV/Aids), que apontou a relação entre os cortes orçamentários nas áreas de saúde e educação, implementados no Brasil desde 2016, e o atraso nas respostas à epidemia que matou uma pessoa por minuto no mundo em 2022 (Agência Aids, 15 jul. 2023). De acordo com o relatório, o Brasil cumpriu apenas uma das três metas globais para a erradicação da doença, tendo atualmente 95% das pessoas em tratamento com a carga viral suprimida. As outras duas metas dizem respeito ao conhecimento sobre o diagnóstico, cujos dados são de 91% das 990 mil pessoas vivendo com HIV, e a adesão ao tratamento, que atualmente é de 81%. Cinco países africanos atingiram 95% nas três metas, evidenciando o entrave brasileiro.

Eliza da Silva Vianna​ é professora do Instituto Federal de Alagoas (Ifal)*

Referências:

ABIA, Associação Brasileira Interdisciplinar de Aids. Política de morte: o fim do departamento de Aids. Articulação Nacional de Luta contra a Aids – Anaids / Associação Brasileira Interdisciplinar de Aids – Abia / Fórum de ONGs Aids/SP – Foaesp / Grupo de Apoio à Prevenção da Aids/RS – Gapa/RS / Grupo de Incentivo à Vida – GIV / Rede Nacional de Pessoas Vivendo com HIV e Aids. Rio de Janeiro, 22 maio 2019. Disponível em: https://abiaids.org.br/politica-de-morte-o-fim-do-departamento-de-aids/32852. Acesso em: 15 jul. 2023.

AGÊNCIA AIDS, Agência de Notícias da Aids. Relatório Unaids: especialistas dizem que o atraso na resposta brasileira ao HIV/Aids está ligado à limitação de gastos com saúde e educação dos últimos anos. 15 jul. 2023. Disponível em: https://agenciaaids.com.br/noticia/relatorio-unaids-especialistas-dizem-que-o-atraso-na-resposta-brasileira-ao-hiv-aids-esta-ligado-a-limitacao-de-gastos-com-saude-e-educacao-dos-ultimos-anos/. Acesso em: 15 jul. 2023.

BARROS, Sandra Garrido de. Política Nacional de Aids: construção da resposta governamental à epidemia HIV/Aids no Brasil. Salvador: Edufba, 2018.

BIEHL, João. ‘Antropologia no campo da saúde global’. Horiz. antropol. 17 (35), Jun 2011. DOI. https://doi.org/10.1590/S0104-71832011000100009

BRASIL. Ministério da Saúde. Portaria nº 236, de 2 de maio de 1985. Disponível em: http://antigo.aids.gov.br/pt-br/legislacao/portaria-236-de-2-de-maio-de-1985. Acesso em: 12 jul. 2023.

BRASIL. Lei nº 9.313, de 13 de novembro de 1996. Dispõe sobre a distribuição gratuita de medicamentos aos portadores do HIV e doentes de Aids. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l9313.htm:~:text=LEI%20N%C2%BA%209.313%2C%20DE%2013,Art. Acesso em: 15 jul. 2023.

CONTRERA, Wildney Feres. Gapas: uma resposta comunitária à epidemia da Aids no Brasil. Brasília: Ministério da Saúde/Secretaria de Políticas de Saúde, 2000. Disponível em: https://bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoes/179_2Gapas.pdf. Acesso em: 12 jul. 2023.

CUETO, Marcos; LOPES, Gabriel. AIDS, antiretrovirals, Brazil and the international politics of global health, 1996-2008, Social History of Medicine, v. 34, n. 1, 2021, p. 1-22, 2021. DOI: https://doi.org/10.1093/shm/hkz044.

GREEN, James. Revolucionário e gay: a extraordinária vida de Herbert Daniel: pioneiro na luta pela democracia, diversidade e inclusão. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2018.

MS, Ministério da Saúde. Portaria nº 542 de 22 de dezembro de 1986. Os casos confirmados de Aids e sífilis deverão ser obrigatoriamente notificados… Diário Oficial da União, Seção I, p. 19827, dez. 1986.

MS, Ministério da Saúde. Coordenação Nacional de DST e Aids. Política Nacional de DST/Aids: princípios e diretrizes. Brasília: Ministério da Saúde, 1999. Disponível em: https://bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoes/cd03_17.pdf Acesso em: 12 jul. 2023.

NASCIMENTO, Dilene Raimundo do. As pestes do século XX: tuberculose e Aids no Brasil, uma história comparada. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz, 2005.