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Especial O Ministério da Saúde e o PNI | A construção da Política Nacional de Atenção Básica

17 ago/2023

Márcia Valéria Morosini (EPSJV/Fiocruz)​*

 
 

No processo federativo de gestão do Sistema Único de Saúde (SUS), o Ministério da Saúde, gestor federal do sistema, tem promovido a adesão dos municípios a programas, estratégias e políticas nacionais, por meio do aporte direcionado de recursos. A organização e a expansão da Atenção Básica foram favorecidas por esse tipo de indução, principalmente por meio dos extintos Pisos da Atenção Básica PAB fixo e PAB variável que permitiram, por exemplo, a nacionalização da Estratégia Saúde da Família como modelo de atenção. As Políticas Nacionais de Atenção Básica (Pnab) de 2006, 2011 e 2017 são documentos que cumprem também esse papel indutor, de modo mais abrangente e sistematizado, oferecendo diretrizes para a organização desse âmbito de atenção do SUS.

Como documento pactuado, espera-se que a Pnab seja resultante-síntese das disputas em torno da Atenção Básica (AB), principalmente entre a União e os municípios, e dos interesses da sociedade civil organizada. Produzidas em contextos diferentes, seus textos revelam ênfases e tendências próprias. A Pnab 2006 tem a relevância de ser o documento inaugural e de expressar a intenção do Ministério da Saúde de “revitalizar a Atenção Básica à saúde no Brasil” (Brasil, 2006). Foi construída por meio de um processo participativo que mobilizou sujeitos políticos dos municípios, dos estados e da União, além da participação de representantes de instituições acadêmicas, trabalhadores(as) e representantes de usuários e entidades representativas do SUS.

Pode-se entender a Pnab 2006 como um ponto de culminância de um processo de valorização crescente da Atenção Básica no SUS, de definição das responsabilidades principalmente entre a União e os municípios e de afirmação da Estratégia Saúde da Família (ESF) como caminho para a reorganização da atenção à saúde em âmbito municipal. Essa construção tornou-se mais robusta a partir de final da década de 1990, com a publicação da Norma Operacional Básica do SUS de 1996 (NOB 96), que colocou o Programa Saúde da Família (PSF) na condição de estratégia de reorientação da AB e instituiu os componentes fixo e variável do Piso da Atenção Básica (PAB), com transferência regular e automática de recursos financeiros aos municípios que adotassem o Programa de Agentes Comunitários de Saúde (Pacs) e o PSF, ao mesmo tempo em que mobilizava a responsabilidade municipal por esse nível de atenção.

Em 1998, há alguns desdobramentos importantes da NOB 96. Instituiu-se o primeiro Pacto de Indicadores da Atenção Básica, renovado periodicamente por meio da negociação intergestores de metas para a avaliação e o monitoramento da AB e criou-se o Sistema de Informação da Atenção Básica (Siab). Nesse mesmo ano, ocorreu a publicação da primeira edição do Manual para a organização da Atenção Básica, que teve como protagonistas o Ministério da Saúde, o Conselho Nacional de Secretários de Saúde (Conass) e o Conselho de Secretários Municipais de Saúde (Conasems).

No início da década seguinte, o caminho de fortalecimento da AB vai se pavimentando. Em 2000, com a criação do Departamento de Atenção Básica a AB ganhou força e materialidade institucional no Ministério da Saúde, o que facilitou a articulação política com outros setores e instâncias. Em 2002 é criado o Programa de Expansão e Consolidação do Saúde da Família (Proesf) que aportou recursos para a implantação da Saúde da Família nos municípios de grande porte do país e, em 2003, é realizada a 12ª Conferência Nacional de Saúde (Paiva, 2021). Nessa conferência, sobre o tema Atenção Básica e a Saúde da Família, foram pautados recursos financeiros das três esferas de gestão do SUS para necessidades da AB e a organização e ampliação da Atenção Primária à Saúde (APS), com a Saúde da Família como uma das portas de entrada, e com garantia de continuidade do atendimento nos demais níveis de atenção. Em 2005, por meio do Proesf, instituiu-se a Avaliação para a Melhoria da Qualidade (AMQ), com uma metodologia de avaliação abrangendo gestores, coordenadores, unidades de saúde e Equipes da Saúde da Família (EqSF), em busca de melhorias para a qualidade da AB. (Morosini, Fonseca e Lima, 2018).

Ainda que tenham persistido disputas em torno da abrangência e do escopo da atenção oferecida, a AB seguiu angariando legitimidade, fortalecendo-se como principal frente de ampliação do acesso à saúde no SUS. Nesse percurso, a Estratégia Saúde da Família conquistou centralidade na reorientação do modelo de atenção da AB em expansão. Com tais condições conquistadas, na conjuntura de meados dos anos 2000 construiu-se um importante consenso quanto à necessidade de se consolidar uma política nacional para a AB que favoreceu a publicação da primeira Pnab, o que se reflete na tranquilidade com que se deu a discussão e pactuação do seu desenho original na Comissão Intergestores Tripartite, pouco antes da publicação da sua versão definitiva, em março de 2006.

A PNAB 2006 integra um esforço mais abrangente e articulado – os chamados Pactos pela Vida, em Defesa do SUS e de Gestão – um conjunto de documentos políticos com compromissos firmados entre o Ministério da Saúde, o Conass e o Conasems, em torno de prioridades que promovam melhoras significativas na saúde da população brasileira. Suas diretrizes apontam para reformas institucionais que buscavam aprimorar os processos e instrumentos de gestão e promover maior eficiência e qualidade das respostas do SUS (CNS, 2006).

A dimensão histórica da Pnab 2006 a conecta com os esforços que a antecederam e com aquilo que ela possibilitou, a partir da sua implementação, no sentido da viabilização do direito à saúde no Brasil. A primeira Pnab incorporou os atributos da Atenção Primária à Saúde abrangente e reconheceu a Saúde da Família como o modelo para a reorganização da AB (Melo et al., 2018). Em seu texto lia-se o compromisso explícito com a extensão da cobertura, o provimento de cuidados integrais e a promoção da saúde, assumindo-se como como uma das portas de entradas do usuário no SUS e como eixo de coordenação do cuidado e de ordenação da atenção em rede (Morosini, Fonseca e Lima, 2018). Cabe lembrar que, na vigência da Pnab 2006, deu-se a expansão da ESF nos grandes centros urbanos, a incorporação e ampliação das Equipes de Saúde Bucal (ESB) e a criação dos Núcleos de Apoio à Saúde da Família (Nasf), marcos fundamentais da configuração do modelo da Saúde da Família nas primeiras duas décadas dos anos 2000 (Melo et al., 2018).

Foram muitos os esforços empreendidos sob a liderança do Ministério da Saúde para a realização das orientações e das diretrizes inscritas na Pnab 2006, seja para a formação de trabalhadores, a organização do processo de trabalho, a compreensão do território, o desenvolvimento de relações sustentadas com as chamadas comunidades, a participação popular, assim como para o cumprimento das responsabilidades complementares entre os entes federados. No contexto atual, a convocação que a Pnab 2006 lançou em favor do direito universal e integral à saúde segue ecoando, alertando para as necessidades urgentes de reconstrução e defesa do SUS e da saúde pública.

*Márcia Valéria Morosini é professora-pesquisadora do Laboratório de Trabalho e Educação Profissional em Saúde (Lateps) e do Observatório dos Técnicos em Saúde da Escola Polítécnica de Saúde Joaquim Venâncio da Fundação Oswaldo Cruz (EPSJV/Fiocruz).
 

Referências:

BRASIL. Ministério da Saúde. Secretaria de Atenção à Saúde. Departamento de Atenção Básica. Política Nacional de Atenção Básica. Brasília: Ministério da Saúde, 2006. Disponível em: https://bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoes/politica_nacional_atencao_basica_2006.pdf. Acesso em: 14 jun. 2023.

CONSELHO NACIONAL DE SAÚDE. Pactos pela Saúde. Série Pactos pela Saúde. Brasília: CNS, 2006. Disponível em: https://conselho.saude.gov.br/webpacto/index.htm. Acesso em: 14 jun. 2023.

MELO, Eduardo Alves; MENDONÇA, Maria Helena Magalhães de; OLIVEIRA, Jarbas Ribeiro de; ANDRADE, Gabriela Carrilho Lins de. Mudanças na Política Nacional de Atenção Básica: entre retrocessos e desafios. Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 42, n. especial 1, p. 38-51, set. 2018.

MOROSINI, Márcia Valéria Guimarães Cardoso; FONSECA, Angélica Ferreira; LIMA, Luciana Dias de. Política Nacional de Atenção Básica 2017: retrocessos e riscos para o Sistema Único de Saúde. Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 42, n. 116, p. 11-24, jan.-mar. 2018.

PAIVA, Carlos Henrique Assunção. A Atenção Primária à Saúde no SUS: o processo de construção de uma Política Nacional (1990-2006). Caminhos da História, Montes Claros, v. 26, n. 2, p. 32-55, jul.-dez. 2021.