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Especial História e Covid-19 | Pandemia e os métodos digitais no ofício do historiador: aceleração e urgência

20 mar/2023

Eric Brasil (Unilab)*

 
 

Introdução

Em janeiro de 2020, publiquei um artigo com o professor Leonardo Nascimento (UFBA) em que buscamos refletir sobre o ofício de historiadores e historiadoras frente à digitalização em massa de documentos históricos, utilizando como fio condutor a Hemeroteca Digital Brasileira, da Biblioteca Nacional (Brasil e Nascimento 2020). O artigo foi escrito num mundo anterior à Covid-19 que nos assola desde março de 2020. Nele, defendemos a necessidade de um esforço sério e profundo dos profissionais da História em desenvolver um novo conjunto de competências metodológicas e reflexões teóricas capazes de lidar com dados provenientes dos processos de digitalização de documentos históricos e de documentos nativamente digitais.

Dois meses após sua publicação, o mundo foi engolido pela mais terrível pandemia dos últimos 100 anos e o Brasil enfrentou uma catástrofe humanitária de escala inimaginável. Ninguém passou ileso, física e emocionalmente. Todas as atividades profissionais precisaram lidar com demandas inéditas por adaptação e adequação para continuarem em exercício, mesmo que, muitas vezes, mantendo apenas o mínimo necessário para evitar sua paralisação completa.

Nós, historiadores e historiadoras, fomos privados do acesso presencial aos arquivos e bibliotecas. O trabalho silencioso e comumente solitário das horas e horas de leitura, transcrição e anotação, trajando luvas e máscaras para evitar contaminações por fungos e bactérias que se abrigam aconchegados em documentos seculares, foi substituído por (ainda mais) horas incessantes em frente a telas de tamanhos variados.

Há muitas décadas nossas fontes não se restringem a documentos escritos ou visuais e sonoros preservados em instituições arquivísticas. Os métodos de pesquisa que demandam o contato direto com sujeitos históricos, monumentos, festas, manifestações populares já estão consolidados na disciplina com as produções da história oral, etnohistória, das variadas possibilidades de pesquisa da história do tempo presente e história pública, assim como o ensino de história. Todas foram forçadas a modificar amplamente suas abordagens.

Ou seja, todos fomos arremessados num turbilhão de dúvidas e questionamentos sobre como proceder metodologicamente nesse contexto brutal de pandemia. Como se não bastasse, o contexto foi agravado pelo preocupante corte de investimentos nas áreas da educação, ciência e tecnologia e pelo crescente movimento negacionista e anticientífico em diversos setores da sociedade e do governo federal.

Nesse contexto absurdo, uma questão – já anunciada por muitos, tangenciada por outros e evitada pela maioria – ganhou ares de urgência e inevitabilidade. O tempo parece ter se acelerado para historiadores e historiadoras a partir de março de 2020, quando se viram diante da pergunta inescapável: como fazer história numa era digital? As perguntas derivadas também são complexas e desafiadoras: Nada muda? Tudo muda? É uma coisa de nicho? Seremos todos programadores ou não seremos historiadores relevantes?

Historiadores e tecnologia

Essas questões, entretanto, não são novas. A pandemia acelerou a demanda por formações e debates sobre ferramentas e métodos digitais e fez crescer o número de eventos, projetos e laboratórios que tratam de temas das humanidades digitais.  Porém, a História, e as ciências humanas em geral, tem uma longa tradição de utilização de tecnologias digitais na pesquisa.

Como mostra Adam Crymble (2021), as múltiplas histórias da relação entre o trabalho historiográfico e a tecnologia digital remontam aos primeiros computadores ainda nos anos 1950 e nas décadas seguintes diferentes caminhos foram trilhados, assumindo termos como “história quantitativa”, “nova história econômica”, “cliometria”, “econometria”, “história e computação”, entre outros (Crymble 2021, 40). Com os projetos de digitalização em massa de documentos históricos e o desenvolvimento da internet ainda nos anos 1990, o termo História Digital, inserido no amplo e variado campo das Humanidades Digitais, ganha força e destaque, principalmente em pesquisas voltadas para o desenvolvimento de metodologias e ferramentas digitais e nos debates sobre ensino de história, história pública e divulgação. Com o advento da web 2.0 [1], na primeira década do século 21, as formas de interação com as informações digitais são alteradas: passamos a experimentar novas possibilidades de pesquisar, analisar, ensinar e divulgar nossos trabalhos (Milligan 2019). Por um lado, as interfaces gráficas de usuários ou GUI [2], as bases de dados e repositórios on-line de fontes, as APIs [3] (ou a não existência delas) e a reprodução por vezes irrefletida de arquivos digitais, compartilhados pelos mais variados meios, e por outro, as ferramentas mais cotidianas do trabalho – editores de textos e planilhas, gerenciadores de referências, aplicativos de mensagem instantânea e e-mails, entre tantos outros – atingem todos e todas que pesquisam a história das sociedades humanas nos dias de hoje.

Em pesquisa recente, sob minha orientação, com professores e professoras de história das instituições públicas de ensino superior do estado da Bahia, Ana Carolina Veloso e Priscila Valverde mostram que 90,9% dos participantes utilizam repositórios online de documentos históricos (Brasil, Valverde, e Veloso 2022). Desses, 65% o fazem há mais de cinco anos e apenas 10% por menos de 1 ano. Ao mesmo tempo, em uma escala de 1 a 5 (sendo 5 “não atende”) 59,1% responderam que a formação em história como é feita atualmente não atende os desafios de lidar de forma eficiente com esses mesmos repositórios (opções 4 e 5). E apenas 22,7% afirmam que atende (opções 1 e 2).

Concluímos que, apesar da difusão e mesmo centralidade do uso de repositórios de fontes online, comumente acessadas a partir de interfaces gráficas de usuários, a formação em história não acompanhou a prática da pesquisa na área. Isso gera um descompasso preocupante entre formação e pesquisa e implica limitações tanto no uso e aplicação de ferramentas e métodos digitais quanto nas reflexões teóricas que devem acompanhá-las (Brasil, Valverde, e Veloso 2022).

A falta de capacitação técnica e crítica para lidar com ferramentas e GUI muitas vezes leva à percepção – e a uma prática – de que trabalhar com dados digitais (sejam arquivos nativamente digitais ou digitalizados, sejam os metadados associados a esses dados) é apenas transpor para o “mundo virtual” as práticas analógicas.

Precisamos agora avançar nas reflexões epistemológicas, da produção do conhecimento histórico mediado por tecnologias digitais.

Formação 2.0

Uma discussão sobre formação na história, portanto, se faz urgente. Mais do que apenas um letramento digital que capacite a utilização de ferramentas – embora importante – seria fundamental a incorporação de debates mais profundos sobre: interdisciplinaridade e trabalho colaborativo de nossa prática científica; aspectos éticos ligados à coleta e tratamento de dados digitais; políticas e boas práticas voltadas para preservação, registro e reprodutibilidade dos métodos e dados digitais; e uma dedicação especial para o estudo e compreensão do pensamento algorítmico e de lógica de programação.

Porém, nada disso seria o bastante sem uma apropriação robusta da literatura sobre metodologia, teoria da história e historiografia. A partir daí será possível uma análise crítica das ferramentas, GUI, bases de dados, algoritmos e ao mesmo tempo a produção de reflexões epistemológicas novas, adequadas às novas maneiras que historiadores e historiadoras acessam, coletam, organizam e analisam as fontes e produzem conhecimento histórico. Assim, poderemos avaliar com maior precisão a relevância histórica de conjuntos de dados no oceano de informações que ameaça nos afogar a cada segundo.

*Eric Brasil é professor do curso de História e do Bacharelado Interdisciplinar em Humanidades do Instituto de Humanidades e Letras da Universidade da Integração Internacional da Lusofonia Afro-Brasileira (UNILAB), campus Malês, Bahia. Investigador Visitante no Laboratório de Humanidades Digitais, IHC, FSCH-NOVA, Lisboa, Portugal e pesquisador do LABHD-UFBA. Doutor (2016) e Mestre (2011) pelo Programa de Pós­-Graduação em História Social da Universidade Federal Fluminense.
 

[1] Segundo a Wikipédia, a Web 2.0 é “uma segunda geração de comunidades e serviços, tendo como conceito a "Web enquanto plataforma", envolvendo wikis, aplicativos baseados em folksonomia, redes sociais, blogs e Tecnologia da Informação.” Web 2.0. In: Wikipédia, a enciclopédia livre. [s.l.: s.n.], 2022. Disponível em: <https://pt.wikipedia.org/w/index.php?title=Web_2.0&oldid=64097337>. Acesso em: 25 out. 2022.

[2] Ver: Graphical User interface ou Interface gráfico do usuário ou utilizador “é um tipo de interface do utilizador que permite a interação com dispositivos digitais por meio de elementos gráficos como ícones e outros indicadores visuais, em contraste a interface de linha de comando.” Interface gráfica do utilizador. In: Wikipédia, a enciclopédia livre. [s.l.: s.n.], 2022. Disponível em: <https://pt.wikipedia.org/w/index.php?title=Interface_gr%C3%A1fica_do_utilizador&oldid=63533578>. Acesso em: 25 out. 2022.

[3] Application Programming Interface, nas palavras de Patrick Smyth, uma API se refere “a uma parte de um programa de computador criado para ser usado ou maniplado por outro programa, em oposição a uma interface criada para ser utilizada ou manipulada por um humano” (Smyth 2018, tradução minha).

Referências:

Brasil, Eric, e Leonardo Fernandes Nascimento. 2020. "História digital: reflexões a partir da Hemeroteca Digital Brasileira e do uso de CAQDAS na reelaboração da pesquisa histórica." Revista Estudos Históricos 33 (69): 196–219. http://dx.doi.org/10.1590/S2178-14942020000100011.

Brasil, Eric, Priscila Valverde, e Ana Carolina Veloso. 2022. "Curso-de-Historia-Unilab-Males/historia-digital-PIBIC: História Digital: acervos e ferramentas digitais para pesquisa e ensino". Zenodo. https://doi.org/10.5281/zenodo.7248403.

Crymble, Adam. 2021. Technology and the Historian: Transformations in the Digital Age. Topics in the Digital Humanities. Urbana: University of Illinois Press. https://www.press.uillinois.edu/books/catalog/57hxp7wr9780252043710.html.

Milligan, Ian. 2019. History in the Age of Abundance?: How the Web Is Transforming Historical Research. 328o ed. London; Chicago: McGill-Queen’s University Press.

Smyth, Patrick. 2018. "Creating Web APIs with Python and Flask". Programming Historian, abril. https://programminghistorian.org/en/lessons/creating-apis-with-python-and-flask.