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Elias Sousa
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Cinema teve papel importante para popularização da memória do Holocausto, diz historiador

Em entrevista, Avraham Milgram destaca relevância dos arquivos para a produção de teses, livros e filmes; pesquisador ministrará palestra na Casa

Vivian Mannheimer

26 jul/2024

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Em 31 de março de 1939, dois líderes católicos alemães – o arcebispo de Munique, Michael von Faulhaber, e o bispo de Osnabruck, Wilhelm Berning – pediram ao recém-eleito Papa Pio XII que conseguisse junto ao então presidente do Brasil, Getúlio Vargas, três mil vistos destinados a católicos não-arianos da Alemanha. No entanto, logo o governo brasileiro expôs uma série de dificuldades em relação à vinda deles ao Brasil e concedeu pouco menos de mil vistos.

O episódio é discutido no livro Os judeus do Vaticano: a tentativa de salvação de católicos não-arianos da Alemanha ao Brasil através do Vaticano (1939-1942), lançado em 1994 pelo historiador brasileiro Avraham Milgram, radicado em Israel há mais de cinco décadas. A obra trata de judeus que se converteram ao cristianismo nos anos 1920 e 1930, que diante da perseguição do nazi-fascismo buscaram emigrar para o Brasil com ajuda da Santa Sé.

É sobre esse tema que Milgram falará na Casa de Oswaldo Cruz durante o Seminário Internacional Brasil-Alemanha: Circulação, Intercâmbio, Zonas de Contato, que será realizado nos dias 26 e 27 de setembro. O evento coincide com o bicentenário da imigração alemã no Sul do país e abordará a complexidade das relações entre os dois países.

Menino e homem observam, ocultos atrás de uma parede. Cena do filme A Vida é Bela
Cena do filme A Vida é Bela. (Foto: Reprodução)

Milgram trabalhou por 30 anos no Museu do Holocausto de Jerusalém, Yad Vashem, localizada no topo do Monte da Recordação. O museu reúne um vasto arquivo de material de imprensa da época, cartas, diários, documentos administrativos de autoridades civis, militares e arquivos pessoais oriundos de todos os países europeus que evidenciam a perseguição e o assassinato de seis milhões de judeus pelo Estado nazista alemão e seus cúmplices durante a Segunda Guerra Mundial. O museu também realiza um trabalho contínuo para a identificação dos nomes de todas as vítimas.

Em entrevista à Casa de Oswaldo Cruz, Milgram falou sobre a importância do arquivo do museu isralense. De acordo com o historiador, o material desempenha um papel fundamental ao embasar uma vasta produção historiográfica além de filmes sobre o tema, que, para ele, representam a forma mais efetiva de divulgar e popularizar a memória do Holocausto. Milgram falou ainda sobre o distanciamento das novas gerações em relação ao Holocausto e sobre negacionismo histórico.

Discutir com negacionistas é quase que uma perda de tempo. Não é que eles não conheçam os fatos. Eles não aceitam os fatos, negam os fatos, negam o que encontram nos arquivos.

AVRAHAM MILGRAM

HISTORIADOR

Como o senhor começou a trabalhar no Museu do Holocausto de Jerusalém? Poderia falar um pouco sobre o trabalho que desenvolveu durante os 30 anos que esteve lá?

Eu estava na faculdade, estudando História, e no meio do meu mestrado, em 1977, tive um curso com um professor que era muito conhecido aqui em Israel. Ele participou da revolta do gueto de Varsóvia em 1943, esteve em Auschwitz, sobreviveu ao Holocausto, veio para Israel e se tornou professor de história. Fiquei muito impressionado com o curso. Não conseguia parar de ler sobre o Holocausto. Aí decidi que iria dedicar a minha vida a essa disciplina.

Trabalhei com educação não-formal em instituições de ensino sobre o Holocausto até que consegui uma vaga no Yad Vashem, nos anos 1980. Lá trabalhei com educação, depois fui para outros setores. Fui uma espécie de jogador polivalente em termos acadêmicos. Dediquei-me muito à museologia, fui historiador do atual museu do Yad Vashem e da exposição do Pavilhão 27 no memorial e museu de Auschwitz-Birkenau. Trabalhei com pesquisa e também no arquivo do Yad Vashem, que é um arquivo muito importante ao reunir uma documentação do mundo inteiro sobre o antissemitismo entre as duas guerras mundiais e sobre a implementação do Holocausto.

Há uma série de arquivos e museus do Holocausto pelo mundo. O que diferencia o arquivo do Museu do Holocausto de Jerusalém dos outros e qual é a sua importância?

Há muitos museus que possuem arquivos sobre o Holocausto. Os mais famosos são o Museu do Holocausto de Nova York, o Mémorial de la Shoah em Paris, o Museu do Holocausto de Londres e por aí vai. Hoje em dia quase não há país europeu que não tenha um museu e arquivos sobre o tema. Mas a especificidade do arquivo do Yad Vashem é que buscou reunir a documentação do mundo inteiro sobre o Holocausto e o antissemitismo entre as duas guerras mundiais e durante a Segunda Guerra Mundial. Caso haja algo que caracterize esse arquivo é a tendência global, de juntar a documentação de todas as línguas, de todos os países, sobre todos os aspectos, além da biblioteca que está junto com o arquivo.

É um arquivo riquíssimo, grande, e que está sendo digitalizado. Possui material de imprensa, cartas, diários, testemunhos de vítimas, de observadores e assassinos, documentos administrativos alemães e de outros países também, além de arquivos pessoais doados. Essa coleção é importante para pesquisadores de vários países: alemães, poloneses, húngaros, eslovacos, tchecos, franceses. Lá se encontra material documental, que reflete a política antissemita que havia no mundo inteiro nos anos 30 e, principalmente, sobre o assassinato de judeus durante a Segunda Guerra Mundial.

Para dar alguns exemplos, a lista de Schindler original se encontra no Yad Vashem. Uma outra coisa que eu acho interessante e que só o museu de Jerusalém faz é a tentativa de reunir o maior número possível de nomes de vítimas do Holocausto. Isso começou nos anos 1950. São páginas de testemunho que os sobreviventes e familiares das vítimas preenchem. Há décadas o museu tenta chegar aos seis milhões de nomes, mas eu acho que o arquivo nunca vai completar esse número. Não apenas porque é uma quantidade muito grande, mas porque houve comunidades pequenas de três, cinco mil pessoas que foram destruídas por completo. Acredito que o arquivo do Yad Vashem já coletou mais de 4,5 milhões de nomes de vítimas, mas é um processo, é algo contínuo.

À medida que o tempo passa as pessoas parecem se distanciar do Holocausto, o termo passa a ser usado com outros sentidos e fins, ao mesmo tempo em que há cada vez mais pessoas negando ou minimizando o episódio. O que o senhor pensa disso e como os arquivos podem ser usados no combate à desinformação e ao negacionismo?

O tempo passa e a humanidade vai se distanciando do Holocausto, assim como se distanciou de outros genocídios que ocorreram, como o genocídio dos armênios durante a Primeira Guerra Mundial. Um fator importante e problemático é que umas duas gerações depois de terminada a Segunda Guerra Mundial, os adultos da Europa tinham testemunhado o processo do Holocausto nas suas cidades, nos seus vilarejos em países como França, Hungria, Tchecoslováquia, Polônia, Ucrânia, Lituânia. Essas pessoas foram testemunhas, e também havia um certo peso de consciência devido à passividade de vários grupos e grandes populações em toda a Europa.

De fato, na medida em que passam as gerações há esse distanciamento e uma certa alienação em relação ao tema, apesar de que hoje em dia na Europa, e em outros lugares também, há uma rede enorme de museus e monumentos sobre o Holocausto. Mas isso não significa que a existência de monumentos e museus mantenha à flor da pele a memória do Holocausto. É preciso mais do que isso. Filmes popularizam muito mais a memória do Holocausto do que museus e arquivos. São vários os exemplos: A Lista de Schindler, A Escolha de Sofia, A Vida é Bela. Os arquivos são muito importantes porque lá se encontra o material autêntico, o material mais essencial para tudo, seja para a produção de teses acadêmicas, livros de não ficção, romances e filmes.

Sobre a questão do negacionismo, isso começou durante o próprio Holocausto pelos próprios assassinos. Na época que estava sendo implementado o assassinato sistemático, físico e massivo de judeus, os alemães tinham consciência de que o que eles estavam fazendo era um crime de tal natureza e dimensão que a civilização não iria aceitar. Aí eles começaram a apagar as provas do crime. Nos campos de extermínio, os judeus não eram enterrados depois de serem asfixiados por gás, eram queimados. Não há uma prova em termos de corpos, mas isso não significa que não dá para saber quantos morreram. Os próprios assassinos testemunharam em julgamentos, vítimas sobreviveram e testemunharam. Os campos não foram construídos longe de vilarejos e cidades. As pessoas podiam testemunhar os trens saindo cheios e voltando vazios.

Eu diria que discutir com negacionistas é quase que uma perda de tempo. Não é que eles não conheçam os fatos, claro que conhecem. Eles não aceitam os fatos, negam os fatos, negam o que encontram nos arquivos. Alegam que a documentação é uma falsidade e não prova nada. 

Em algumas entrevistas suas, o senhor diz que é possível perceber semelhanças entre o que ocorre no mundo de hoje – com o surgimento de governos de extrema-direita, retrocessos democráticos – e o período entreguerras na Europa. Quais seriam as semelhanças e diferenças entre esses dois momentos? Essa comparação também se aplica aos dias de hoje?

Eu fiz essas afirmações há alguns anos e as mantenho, mas quero deixar claro que nunca afirmei que há fenômenos nos dias de hoje que são idênticos aos dos anos 30 e 40 do século passado. A história nunca se repete. Isso é um axioma. O que eu, sim, aleguei é que há fenômenos dos nossos dias que lembram, e nos fazem associar a fenômenos que ocorreram no passado.

O mundo de hoje, e isso já faz alguns anos, tem trazido à tona os nacionalismos, e isso é uma característica muito forte dos anos 1930 e 1940. A legitimidade de estados de usarem força física, militar e até imperialista para atingir objetivos estatais e políticos ainda existe hoje em dia. Ódio ao outro, racismo, discriminação e a tentativa de eliminar grupos humanos também seguem existindo. O que começou nos anos 1920, 1930 e que lentamente se tornou uma linguagem assimilada capaz de implementar a destruição dos judeus da Europa também existe hoje em dia. Na China, estão destruindo um grupo de chineses muçulmanos, os uigures. E a mesma coisa está acontecendo em Myanmar, antiga Burma contra os ruaingas. Ambos são genocídios e ocorrem nos dias de hoje, e aliás, a indiferença que há em relação a ambos grupos étnicos evoca o passado em relação aos judeus.

Além do ódio, da força física, das tendências imperialistas e radicalismos, algo que muito me faz associar o mundo de hoje ao de 80, 90 anos atrás é o ataque ao liberalismo e à democracia. Isso nós podemos perceber de forma muito evidente hoje em países como Hungria, Eslováquia, Áustria, Itália, mas também nos EUA, Israel e mesmo no Brasil.

Há um renascer de correntes fascistas, populistas, autocráticas que ameaçam os valores ocidentais de justiça, direitos humanos, democracia etc.

Mas certamente há diferenças em relação àquela época. Na primeira metade do século passado, para que essas tendências e correntes pudessem revolucionar a sociedade e destruir a estrutura liberal democrática era preciso conquistar o poder. Hoje em dia isso não é mais necessário. Golpes militares não são necessários. Essas correntes chegam ao poder democraticamente e usam a democracia para avançar em suas tendências autocráticas, antiliberais, antidemocráticas contra minorias, gays, judeus, islâmicos e imigrantes.