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Entraves na área de saneamento se perpetuam há mais de 100 anos

30 mar/2022

Tese sobre intervenções na Baixada Fluminense aponta problemas como interesses políticos em detrimento da técnica e falta de recursos 

Arte: Silmara Mansur/Banco de Imagens.  

Ilustração: Dois políticos, um de antigamente e outro de hoje, discursam em púlpitos em frente a um rio poluído

Por Karine Rodrigues

Descontinuidade administrativa, ausência de direção, insuficiência de verbas, má compreensão do problema e falta de uma visão de conjunto estão por trás dos constantes insucessos de intervenções públicas na área de saneamento, aponta relatório apresentado em… 1934! É o que mostra uma pesquisa de doutorado do Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde da Casa de Oswaldo Cruz (COC/Fiocruz), que investigou as políticas para o setor na região da atual Baixada Fluminense, no Estado do Rio de Janeiro.

Se você tira datas e nomes e deixa só os espaços físicos, essa história do [saneamento no século] passado parece que é de agora. Problemas que enfrentamos hoje na Baixada Fluminense vêm desde a construção das primeiras políticas públicas na área de saneamento, feitas desconsiderando a realidade local

A lista dos entraves identificados no século passado causa espanto pela atualidade. Embora referentes a comissões de saneamento em vigor no Brasil entre o fim do século 19 e início do século 20, muitos deles seguem na raiz do atraso brasileiro no campo do saneamento. Segundo a última Pesquisa Nacional de Saneamento Básico do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), de 2017, em 34,1 milhões de domicílios, quase metade do total do país, não há acesso à rede de esgoto, e em 9,6 milhões inexiste abastecimento de água por rede.  

A esperada universalização dos serviços ficou para 2033, de acordo com o novo Marco Legal do Saneamento Básico, sancionado há dois anos. Mas se quase um século foi insuficiente para solucionar problemas do setor, o prazo de uma cerca de década soa irrazoável para que finalmente o país garanta um direito que é básico e inclui abastecimento de água potável, esgotamento sanitário, limpeza urbana e manejo de resíduos sólidos e drenagem e manejo das águas pluviais.  

“Se você tira datas e nomes e deixa só os espaços físicos, essa história do passado parece que é de agora, de 2022. Problemas que enfrentamos hoje na Baixada Fluminense vêm desde a construção das primeiras políticas públicas na área de saneamento, feitas desconsiderando a realidade local”, observa a historiadora Adriana Branco Souto, autora da tese que investigou o tema. 

Adriana analisou a trajetória institucional dos órgãos públicos criados entre 1894 e 1940 com o objetivo de realizar o saneamento dos rios que cruzavam a região então chamada de Iguassú. No caso, a Comissão de Estudo para o Saneamento da Baixada do Estado do Rio de Janeiro (Cesberj), a Comissão Federal de Saneamento da Baixada Fluminense (CFSBF) e a Comissão de Saneamento da Baixada Fluminense (CSBF), transformada, em 1936, em Diretoria de Saneamento da Baixada Fluminense (DSBF).

Municípios da Baixada dominam ranking nacional dos piores em saneamento

Segundo a historiadora, conhecer como se deram as primeiras intervenções públicas em Iguassú ajuda a compreender a situação atual, ainda muito longe do ideal. No ano passado, ranking da Trata Brasil, baseado em dados do governo federal, apontou que três das 10 piores cidades do país em saneamento básico estão no Grande Rio: Belford Roxo, Duque de Caxias e São João de Meriti. E dentro do Estado, a região amarga o pior desempenho, segundo estudo da Federação das Indústrias do Estado do Rio de Janeiro (Firjan), de 2020.

Para a historiadora esse passado distante no tempo está ligado ao que se vê atualmente, com problemas relacionados à construção de adutoras, à questão dos descartes ilegais de lixo, à análise de relatórios de impacto ambiental e tramitação de projetos e orçamentos relacionados a obras de saneamento básico em câmaras municipais, onde aprovação ou veto podem caminhar ao sabor da posição política de grupos majoritários.   

“A evolução de projetos para o saneamento, assim como outros que envolvessem a construção de uma infraestrutura, enfrentavam dois tipos de impedimento. Primeiro, havia a escassez e inflexibilidade no uso dos recursos financeiros; segundo, a "invasão por interesses políticos eleitoreiros ou empreguistas", escreve na tese. Um dos relatórios sobre o trabalho realizado pelas comissões até 1930 aponta que as ações adotadas deixaram a desejar, em decorrência de uma série fatores, como “a descontinuidade administrativa, a falta de direção e a insuficiência de verbas, aliada à má compreensão do problema, à falta de uma visão de conjunto e a deficiência de estudos”.

A região Iguassú começou a ser ocupada no fim do século 16, às margens do rio homônimo. Em terras doadas aos beneditinos, se desenvolveram a pecuária, a agricultura e os engenhos de açúcar. A prosperidade veio com a produção agrícola e a navegabilidade de seus rios, como Meriti, Sarapuí, Iguassú, Guandú e Estrela. Existiam vários pequenos portos espalhados pelo que viria a se chamar mais adiante Baixada Fluminense. Até o início do século 19, as intervenções no ambiente se limitavam à abertura de valas e canais e desobstrução dos rios, realizadas de forma manual pelos escravos, a mando dos grandes proprietários de terra. Mais adiante, foram criadas as comissões de saneamento.

Na Câmara dos Vereadores, projetos alterados sem justificativa técnica

Sobre interferências políticas, Adriana conta que engenheiros como Francisco Rodrigues Saturnino de Brito (1864-1929), principal referência na área, e Hildebrando Araújo de Góes (1899-1980) descobriram, na prática, que a elaboração de um projeto técnico sobre saneamento – algo, diga-se de passagem, pouco frequente à época – não necessariamente determinava as ações que seriam levadas a cabo mais adiante.  

“Li atas das sessões da Câmara de Vereadores. Na tramitação de projetos, pontes e obra foram mudadas de lugar por razões pessoais, como a proximidade da fazenda de um dos vereadores, e questões relacionadas à desapropriação. O projeto sofria alterações sem justificativas técnicas”. 

Por falta de verba, deixava-se, por exemplo, de fazer a limpeza e desobstrução dos rios, ação prévia às intervenções ambientais, considerada essencial para se conhecer o regime natural dos rios e identificar se, e em qual ponto, seria necessário intervir.  

Em relatório de 1914, o engenheiro responsável pela CFSBF discorre sobre a questão, frisando que, “dificilmente poderá ser obtido um levantamento preciso das diversas zonas da baixada, em geral cobertas de extenso lençol de águas estagnadas, onde é impossível distinguir o rio do pântano”. Só duas décadas depois o serviço precedeu a elaboração de um projeto na área.  

Em trecho destacado na tese, Hildebrando de Góes cita a questão da dragagem das barras dos rios. “Na Baixada de Guanabara, verifica-se a preocupação constante e insistente de dragar as barras dos rios e cuidar da sua parte marítima. E não seria difícil concluir que estes trabalhos teriam resultado prático insignificante. O fator que determina o escoamento das águas nos canais e rios é a declividade superficial. Ora esta última é regulada, na foz, pelo nível da maré. E este não baixa com a dragagem da barra”. 

Motivação econômica predominou nas tomadas de decisão

A saúde era uma motivação para as comissões de saneamento. Pelo menos, na teoria. Em seção pública da Sociedade de Medicina, em 30 de junho de 1835, o médico José Martins da Cruz Jobim (1802-1878) chamava a atenção para as moléstias que acometiam os habitantes da cidade do Rio de Janeiro e as emanações pútridas, os tais miasmas, vindas do “vasto terreno encharcado” da região de Iguassú, que chegariam à cidade levadas pelos ventos. Segundo ele, o dessecamento dos pântanos seria necessário para controlar as epidemias, em especial, a malária. 

Embora, no discurso, as comissões de saneamento tenham sido criadas, em especial, para debelar as doenças na região, na prática, o que se viu, é que o principal intento era liberar as terras alagadas para a agricultura, a pecuária e a construção de estradas de ferro, a partir dos interesses do Estado e de uma elite agroexportadora.  

À época, diante de um Rio de Janeiro em crise, Iguassú passou a chamar atenção da elite fluminense e do poder público, pela proximidade com a então capital federal e por sua capacidade agrícola subaproveitada, em razão das áreas alagadas. Seria um caminho para fazer recuperar a economia do Estado. 

Nas documentações que se seguiram, porém, sobressaem os objetivos econômicos, como recuperar a navegabilidade dos rios, cobrar impostos dos proprietários de terras, ampliar a disponibilidade de terras produtivas e identificar terras devolutas. “Apesar do nome da comissão indicar a criação de um órgão público diretamente relacionado à intervenção sanitária para sanear a região; na verdade, o maior peso foi dado à dimensão econômica”, observa Adriana. 

A malária só aparece em um relatório de 1933, que cita a alta incidência da doença na bacia do rio Macabu, em Porto das Caixas, no município de Itaboraí, e em Santana de Japuíba, em 1922, com, respectivamente, 73% e 75% de infectados entre os indivíduos examinados. “Dão a entender que, melhorando a economia, a saúde também vai melhorar, como se uma coisa viesse obrigatoriamente a reboque da outra. Mas não é tão simples”, observa a historiadora. 

“Mostrei que essa engenharia que mais tarde vai se desenvolver usou essa região como laboratório, algo do tipo 'isso aqui funciona, isso ali não; isso aqui politicamente vai dar para fazer; isso ali não vão deixar fazer'”, diz Adriana, avaliando que, apesar de tantos entraves, os “saneadores de Iguassú” conseguiram alguma evolução.

Nascida e criada em Mesquita

A motivação para investigar as comissões de saneamento da Baixada Fluminense vem de casa. Ela é moradora de Mesquita, um dos municípios que integram a região. “Eu tinha uma grande curiosidade sobre o tema porque ouvi muito meus pais, meus avós e meus vizinhos falando que essa região onde moro, antes, era um pântano, que depois foi aterrado, e que por isso sofremos tanto com um forte problema de umidade”, conta ela, observando que a cada dois anos é preciso refazer o emboço das casas, por causa das características do terreno. 

Adriana entrou no curso de licenciatura em História e logo ingressou na iniciação científica levantando fontes sobre a história da Baixada Fluminense. E assim segue até hoje. “A pesquisa foi muito gratificante. Foi uma sensação de pertencimento. Não era um lugar distante, mas onde eu vivia. E me cativou com mais força ainda pelo fato de que nada disso é ensinado nas escolas, parece que a Baixada havia sido criado no nada, caiu na terra como um objeto alienígena, já como é hoje. E não é isso. Há um contexto histórico”, diz ela, que é professora do ensino fundamental e médio em duas escolas privadas em Nova Iguaçu. Agora, pretende transformar a tese em dois livros, um acadêmico e outro para o ensino médio.