Documentos de grande valor histórico agora estão disponíveis para consulta on-line
No alto da folha pautada, dados sobre o espaço e o tempo: Hospital de Isolamento, 6 de novembro de 1899. Logo abaixo, informações detalhadas sobre o estado de saúde e o tratamento do “Doente nº 7”, uma italiana de 26 anos, moradora de Santos, em São Paulo, que contraíra peste bubônica. Foi para resolver a crise de saúde pública decorrente da chegada da doença ao Brasil que surgiu a Fiocruz, criada em 1900, com o nome Instituto Soroterápico Federal.
O documento integra a correspondência completa de Oswaldo Cruz (1872-1917), que traz cartas trocadas com familiares, autoridades e outros cientistas. O conjunto foi digitalizado e agora está disponível para consulta pública on-line na Base Arch, repositório de informações sobre o acervo arquivístico da Fiocruz, sob a guarda da Casa de Oswaldo Cruz (COC/Fiocruz). É a primeira etapa de um projeto que vai tornar acessível digitalmente todo o arquivo pessoal de Oswaldo Cruz.
Com apenas alguns cliques, é possível, por exemplo, acompanhar o desenrolar da epidemia de peste bubônica; os primeiros momentos da atual Fiocruz, criada no início do século passado para produzir soro antipestoso; as impressões sobre os problemas sanitários do país, vistos in loco nas longas viagens pelo Brasil; ficar por dentro das controvérsias científicas do período; e conhecer quais questões o cientista costumava dividir nas cartas trocadas com a mulher e os filhos.
Para o diretor da Casa de Oswaldo Cruz, Marcos José de Araújo Pinheiro, a entrega à sociedade da correspondência digitalizada faz parte de um movimento de preservação e de ampliação dos acervos da Fiocruz sob a guarda da Casa e representa um compromisso com a difusão do conhecimento científico. “É um projeto que reforça a função pública da instituição”, frisa.
Vice-diretor de Patrimônio Cultural e Divulgação Científica, Diego Vaz Bevilaqua destaca que o projeto reforça a missão da Casa de Oswaldo Cruz, que é guardar o acervo que é da sociedade brasileira, também, torná-lo parte da cultura da nossa sociedade. “Ou seja, disponibilizá-lo, colocá-lo em discussão, usá-lo o tempo todo para fomentar o debate sobre a sua história e a sua significância para a o momento que a gente vive”.
A digitalização e a disponibilização da correspondência completa são resultado de um trabalho conjunto de pesquisadores e técnicos dos departamentos de Pesquisa em História das Ciências e da Saúde (Depes) e de Arquivo e Documentação (DAD) da Casa de Oswaldo Cruz. Os documentos se tornaram objetos digitais pelas mãos dos profissionais do Laboratório de Digitalização J. Pinto, em um trabalho conjunto com a equipe do Serviço de Arquivo Histórico e do Serviço de Conservação e Restauração de Documentos.
Documentos fazem parte de Fundo reconhecido pela Unesco
A documentação agora disponível ao público está distribuída no Fundo Oswaldo Cruz, reconhecido pelo Programa Memória do Mundo, da Unesco, e na Coleção Família Oswaldo Cruz. As cartas foram divididas nas subséries pessoal, científica e político-administrativas, totalizando 1.184 itens. Para desenvolvimento do projeto, foram utilizados recursos do Depes, do DAD e do Preservo, programa institucional que objetiva ampliar as ações de preservação e acesso físico e digital aos acervos científicos e culturais da Fiocruz, assim como sua integração.
Com a digitalização, que foi anunciada em evento que faz parte das comemorações do nascimento de Oswaldo Cruz (5 de agosto de 1872), pode-se ampliar o acesso e também reduzir o manuseio das cartas, que, por serem documentos centenários, são muito frágeis. Porém, frisa a chefe do Departamento de Arquivo e Documentação, Ana Roberta Tartaglia, embora seja “superdesejável que as pessoas tenham acesso só ao digital”, reduzindo, assim, a manipulação do documento, o acesso físico não está fora de questão: “As pessoas podem ver, sentir a presença desses documentos, que têm mais de 100 anos”.
Professora do Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde (COC/Fiocruz) e pesquisadora da vida e obra de Oswaldo Cruz, Nara Azevedo considera que a difusão desse acervo tem uma dimensão democrática, ao levar os documentos para um público amplo, que pode, por exemplo, utilizá-lo para desenvolver pesquisa histórica. “Estamos falando não apenas da pesquisa relacionada à saúde pública, mas também da própria história do Brasil na Primeira República”, diz, acrescentando que a iniciativa expressa o cuidado com a memória institucional e com a de seu personagem fundamental, Oswaldo Cruz.
Nara vê também uma dimensão política na iniciativa, pois entende que a decisão de digitalizar e divulgar acervos como o de Oswaldo Cruz representam “um passo firme diante do discurso anticientífico”, pois fica mais difícil inventar algo que não esteja em acordo com o que dizem os registros do passado. “Esses documentos constituem um vestígio de que pessoas, Oswaldo Cruz e seus interlocutores, produziram conhecimento, pensaram os problemas do Brasil, e é assim que se faz história, com esses documentos. Não é algo do meu livre arbítrio. Não posso inventar algo, que não corresponda ao que está ali [nas fontes]. Diante de vestígios do passado, eu não posso inventar qualquer coisa”, diz a ex-diretora da Casa de Oswaldo Cruz, referindo-se à divulgação de narrativas sem respaldo científico.
Pesquisadora do DAD e profunda conhecedora do Fundo Oswaldo Cruz, a historiadora Ana Luce Girão enfatiza a importância da iniciativa para a produção científica em história e em sociologia. “A disponibilização do Fundo Pessoal Oswaldo Cruz representa a ampliação das possibilidades de pesquisas sobre história e sociologia das ciências, bem como sobre a história saúde pública no Brasil, e em diversas outras áreas de conhecimento, além de chegar também a outros públicos, como estudantes em todos os níveis e ao cidadão comum, interessado na diversidade de temas que o acervo pode suscitar”.