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De médicos e médiuns: as relações entre loucura, psiquiatria e espiritismo no Brasil

30 set/2011

O Encontro às Quintas de 22 de setembro recebeu Alexander Jabert, doutor em História das Ciências e da Saúde pela Casa de Oswaldo Cruz. A palestra abordou mais detidamente sua análise dos prontuários de internamento de uma instituição destinada ao tratamento de alienados administrada por seguidores do espiritismo e as concepções de saúde, doença e loucura produzidas por essa doutrina. O Sanatório Espírita de Uberaba, em Minas Gerais, foi inaugurado em 1933 e a análise dos seus prontuários cobriu o período compreendido entre a data de sua inauguração e o ano de 1948. Essa escolha de fonte, segundo ele, “permite dar vida à fala mais marginalizada que é a do próprio louco, apesar dos prontuários conterem o filtro do saber médico-psiquiátrico.” Além de apresentar a pesquisa que resultou em sua tese de doutorado, Jabert fez um balanço dos estudos de História da Psiquiatria e História do Espiritismo no Brasil.

 

Até o início do século 19, os doentes mentais não recebiam tratamento no Brasil, ficavam vagando pelas cidades, ou se fossem agressivos ficavam presos em cadeias públicas. “O encarceramento era uma forma de controle social da loucura, atuação do poder coercitivo do Estado sobre um grupo que perturbava a ordem pública”, explicou Alexander Jabert. A partir da metade do mesmo século é que as Santas Casas de Misericórdia passaram a cuidar desses doentes, e, em 24 de agosto de 1841, através de um decreto imperial foi criado o Hospício Pedro II, que recebeu os primeiros pacientes transferidos das enfermarias da Santa Casa do Rio de Janeiro. “Começa então a medicalização e psiquiatrização da loucura”. Contudo, esse processo se deu em tempos muito diferentes nos vários Estados do país. No Espírito Santo, por exemplo, somente em 1945 é que surge a 1ª instituição de psiquiatria.

 

Diante deste quadro, disse Jabert, “minha proposta era pesquisar o período anterior à criação de uma instituição de tratamento, queria saber como o Estado administrava a loucura sem a psiquiatria”. Em 1921, foi firmado um convênio com um asilo espírita para abrigar os doentes mentais. “Esse não era um caso exclusivo do Espírito Santo”. Os seguidores do espiritismo kardecista patrocinaram a criação de várias instituições asilares para o tratamento de alienados no Brasil. A pedido do médico psiquiatra Henrique Roxo, em 1931, o Governo Federal passa a fiscalizar várias instituições espíritas, porque segundo ele o próprio espiritismo era um patologia mental.

 

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Ao receber o Prêmio Capes de melhor tese, Jabert, ao centro, acompanhado dos pesquisadores Gilberto Hochmann, à esq.,

e Cristiana Faccinetti, à direita. Arquivo pessoal

 

O espiritismo kardecista foi criado por Allan Kardec, educador francês que publicou o Livro dos Espíritos, que expõe comunicações espirituais, organizadas e sistematizadas em forma de perguntas e respostas. A partir daí, produz uma doutrina que se baseia na imortalidade da alma, na existência de Deus, na crença na reencarnação e na manifestação física de entidades espirituais.

 

A noção de progresso dos espíritos é o ponto central do espiritismo, por isso os indivíduos passam por provações e sofrimentos para expiar suas faltas passadas e aprender lições necessárias. O médico e espírita famoso Bezerra de Menezes, por exemplo, dizia que a loucura “pode ser, também, resultante da ação fluídica de espíritos inimigos sobre a alma ou espírito encarnado no corpo”.

 

Alexander Jabert informou que as instituições espíritas tratavam os doentes com terapias como passe mediúnico, água fluidificada, desobsessão espiritual, mas observou que os prontuários médicos pesquisados – cerca de dois mil – do Sanatório Espírita de Uberaba dão a impressão de estar diante de uma instituição psiquiátrica semelhante a qualquer outra, porque a princípio essas instituições eram dirigidas por médicos. Os formulários contêm anamnese, exames físicos, diagnóstico, indicação de tratamento, de acordo com os ensinamentos da psiquiatria acadêmica do período. Segundo ele, depois das sessões de desobsessão o paciente é considerado curado, mesmo que os sintomas não desapareçam, porque entende-se que o espírito se redimiu das falhas cometidas por aceitar com resignação o problema.

 

“A procura da população pela cura de enfermidades junto à Federação Espírita Brasileira (FEB), em 1910, era tão grande, que são aviadas tantas receitas quanto na Santa Casa de Misericórdia do RJ”, disse Jabert. Por conta disso, a FEB é constantemente perseguida e processada pela classe médica, mas sempre foi absolvida porque a Justiça entendia os casos como prática legal da religiosidade, acrescentou.

 

Com o surgimento dos psicotrópicos, nos anos de 1950, o tratamento da loucura no Sanatório de Uberaba passou a ser medicamentoso. Jabert acredita que, hoje, o tratamento espírita não é mais concorrente da Medicina, mas ainda está presente nas formas de curar porque “o espiritismo oferece às pessoas inteligibilidade do adoecimento”.

 

“A minha pesquisa não se preocupa em validar ou invalidar o discurso espírita e sim, como historiador, preocupo-me em estudar o fenômeno histórico”. Atualmente o pensamento hegemônico na psiquiatria é o campo da neurociência, disse ele. No pós-doutorado, o historiador pretende se debruçar mais na análise quantitativa de prontuários médicos de instituições como o próprio Sanatório de Uberaba, em Minas Gerais, bem como de instituições de outros Estados, como o Espírito Santo e o Sergipe. “Eles oferecem visibilidade de experiências coletivas e individuais relativas à loucura, e auxilia na identificação de como o fenômeno da loucura era compreendido pelo grupo social ao qual o louco pertencia, entre outras possibilidades”.

 

Alexander Jabert é graduado em Psicologia pela Universidade Federal do Espírito Santo (1997), tem mestrado em Políticas Públicas de Saúde pela Ensp/Fiocruz (2001) e doutorado em História das Ciências e da Saúde pela COC/Fiocruz (2008). Atua como professor adjunto do Departamento de Psicologia da Universidade Federal de Sergipe e, em 2009, ganhou o Prêmio Capes de melhor tese da área de História.