Aos 20 anos, preta, nascida e criada na favela do Jacarezinho, na zona norte do Rio, Jennyffer Vitória da Silva Augusto tem um futuro pela frente. Caçula de sete irmãos, protagonizou um feito inédito na família: é aluna de graduação em uma universidade federal. Selecionada em 2020 para o Programa de Iniciação à Produção Cultural do Museu da Vida Fiocruz, o Pró-Cultural, ao concluí-lo, a jovem passou a integrar como bolsista a equipe de trabalho responsável pelo projeto, onde permaneceu por dois anos. “A partir dali, sabia que algo maior estava esperando por mim”, conta ela, que logo depois passou para Museologia na Unirio.
Abrimos as nossas portas e fizemos um programa no qual esses jovens possam aprender a teoria e a prática da produção cultural e participar de discussões que abordam, por exemplo, direitos sociais e cidadania. O Pró-Cultural está na missão da Fiocruz, que é contribuir para a transformação da sociedade
Moradora da favela de Manguinhos, Ana Beatriz de Oliveira dos Santos, 19 anos, também realizou uma grande conquista: em 2022, passou na seleção para o programa e, ano seguinte, após fazer um curso em uma instituição parceira do Museu da Vida Fiocruz, começou a trabalhar no Theatro Municipal do Rio de Janeiro. Atuou na contrarregragem da ópera La Traviata, apresentada no último mês de novembro.
“O Pró-Cultural mudou a minha vida. Os conhecimentos que adquiri lá foram de extrema importância. Durante o programa, fiz oficinas e várias atividades educativas com foco na produção cultural e na cidadania. Depois de receber meu certificado de assistente de produção cultural, estudei em uma escola técnica de artes, onde aprimorei meus conhecimentos. Só assim consegui trabalhar no Municipal. O Pró-Cultural abriu as portas para mim”, diz Beatriz, que mora com os pais e três irmãs. Enquanto aguarda a nova temporada de espetáculos, estuda para o Enem. Cenografia e Jornalismo estão entre as suas preferências.
Lançado em 2012, o Pró-Cultural é uma iniciativa de educação não-formal destinada a estudantes de escolas públicas do 2º e 3º ano do Ensino Médio, moradores de territórios socialmente vulnerabilizados próximos à Fiocruz, como Jacarezinho, Maré, Manguinhos e Alemão. O programa do Museu da Vida Fiocruz, que formou cerca de estudantes desde a sua criação, estimula o protagonismo juvenil e propõe a construção de uma leitura mais crítica da realidade, trazendo o debate sobre as contradições da sociedade para o campo da cultura..
“A Fiocruz está cercada de favelas, onde vive uma juventude que precisa de oportunidades. Abrimos as nossas portas e fizemos um programa no qual esses jovens possam aprender a teoria e a prática da produção cultural e participar de discussões que abordam, por exemplo, direitos sociais e cidadania. O Pró-Cultural está na missão da Fiocruz, que é contribuir para a transformação da sociedade”, resume a pedagoga Carmen Evelyn Rodrigues Mourão, coordenadora do Pró-Cultural.
Uma pesquisa sobre a trajetória dos egressos do Pró-Cultural em seus 12 anos de existência está em andamento, mas basta uma conversa com um pequeno grupo de integrantes de diferentes turmas do programa para se concluir que a iniciativa é muito bem-vinda e tem ajudado a abrir novos horizontes para jovens vizinhos da Fiocruz.
Nove meses intensos, com oficinas, debates, visitas técnicas e estágio
Quem passa no processo seletivo para o Pró-Cultural, constituído por redação, dinâmica de grupo e entrevista, ganha uma bolsa de R$ 400 durante os nove meses de duração do programa. Os encontros são realizados três vezes por semana, no período da tarde. Nos nove meses de duração, há debates, palestras, dinâmicas de grupo, exibição de filmes, peças teatrais, atividades de leitura e escrita, oficinas que buscam dar ferramentas para que os participantes possam produzir e realizar eventos e atividades culturais e visitas técnicas a museus, centros culturais e setores de eventos culturais da Fiocruz e de outras instituições públicas. As inscrições para a edição de 2024 serão realizadas nos dias 4, 5, 6 e 7 de março.
Outra dimensão do programa é a discussão de temas contemporâneos. “Juntamos produção cultural com cidadania, ciência, arte. É uma formação mais holística. Cultura em sentido amplo. Buscamos dar instrumentos para que os jovens participem de forma mais crítica do mundo em que vivem. Refletimos sobre racismo, homofobia, intolerância religiosa, desigualdades sociais, feminicídio”, diz Carmen. Ano passado, ela abordou a questão da invisibilidade do trabalho doméstico feito pela mulher dias antes de o tema cair na redação do Enem.
Nos meses de setembro e outubro, os integrantes fazem um estágio. Jonathan Monteiro Santos da Silva, 23 anos, morador da favela da Maré, atuou na área de audiovisual. “Foi incrível. Criei uma animação com uma equipe multimídia da UFRJ. Fiz todo o processo, desde a idealização, pesquisa, montagem, pós-produção”, recorda ele, que é ator do Grupo de Teatro da Maré e segue interessado também em produção cultural. “Minha rotina tem sido correr atrás de trabalhos na área. O Pró-Cultural me ensinou a não desistir e ter equilíbrio e educação”, diz ele, que concluiu o Ensino Médio.
“Os estudos acima de tudo”
Já Taíssa Alice Rosa de Medeiros, 20 anos, estagiou no Serviço de Itinerância do Museu da Vida Fiocruz, responsável por levar as exposições para além dos muros da instituição. Ela, que nunca havia escutado falar sobre produção cultural e nem sabia da existência de curso universitário sobre o tema, gostou tanto do que viu que deixou de lado o antigo desejo de cursar psicologia. Mas diz que o processo até o ingresso no curso de produção cultural do Instituto Federal do Rio de Janeiro (IFRJ) não foi fácil.
“Na minha geração, começam a perguntar o que queremos fazer na vida desde os 15 anos. Se aos 18 você não tem ainda ideia do que deseja, você fica muito perdido. Há pressão para ajudar com os custos da casa; para saber o que quer ser na vida; para estudar para a escola e para o Enem. Tem ainda a pressão do nosso próprio psicológico, pois a adolescência é uma fase em que os hormônios estão mudando. É um furacão muito grande e turbulento”, desabafa.
Taíssa observa que muitos jovens nem sequer concluem o Ensino Médio, em razão da necessidade de conseguir um emprego para ajudar na renda familiar. Mas na casa dela foi possível priorizar a educação. A mãe é técnica em Química e faz faculdade de Biologia, assim como o irmão e a cunhada. Ela tem também uma irmã que é terapeuta educacional. “Além disso, no Pró-Cultural, a Carmen coloca os nossos estudos acima de tudo”, frisa. Desde o segundo semestre do ano passado, Taíssa cursa Produção Cultural e concilia os estudos universitários com o trabalho como bolsista no Serviço de Itinerância do Ciência Móvel, onde fez seu estágio quando estava no programa.
Impacto positivo na construção pessoal e no modo de enxergar o mundo
Entre os egressos do Pró-Cultural, há quem já seja inspiração para outros integrantes. “A Nadaby mora no mesmo lugar que eu, é uma mulher preta como eu e estava na universidade. Então, os meus olhos foram se abrindo para algo maior”, diz Jennyffer, sobre Nadaby Melo Machado, que entrou no Pró-Cultural aos 16 anos. Na época, o programa logo despertou seu interesse. Ela frequentava o “Pac’stão”, área criada com o Programa de Aceleração do Crescimento (PAC), que passou a reunir jovens de favelas próximas a Fiocruz para batalhas de break, rodas de rimas e outras atividades culturais. O nome se deu em razão de o parque estar nas cercanias da “Faixa de Gaza”, assim intitulada em razão dos conflitos armados na região. Além disso, PAC ganhou um novo significado: Por Amor à Cultura.
Hoje com 24 anos, Nadaby trabalha na Coordenação de Equidade, Diversidade, Inclusão e Políticas Afirmativas (Cedipa) da Fiocruz, onde faz interlocução com movimentos sociais e ONGs dos territórios. Ela considera que a participação no Pró-Cultural a colocou em contato com ambientes e situações novas.
“Conheci museus, teatros, tive um maior contato com a ciência e com pautas importantes: raciais, de gênero, sociais, políticas. Esse tipo de estímulo impactou positivamente a minha construção pessoal, o meu modo de enxergar o mundo, o meu senso de justiça e a minha sensibilidade. Foi o momento certo, pois na adolescência estamos descobrindo quem somos e decidindo quem queremos ser. O Pró-Cultural faz o jovem pensar criticamente. Foi um grande privilégio participar do programa”, avalia ela, que está prestes a se formar em Ciências Ambientais da Unirio, com um trabalho sobre racismo ambiental. Desde os 19 anos, mora com o companheiro, no Jacarezinho.
Vivenciando o início de uma trajetória que Nadaby está concluindo, Jennyffer fala com entusiasmo da aula de introdução à museologia, ministrada no Palácio do Catete pelo diretor do Museu da República, “o incrível Mario Chagas”. “É um lugar importante que conquistei sendo moradora de uma favela que sofre diariamente com a violência”, diz, contando que, poucos dias antes, quase perde o pai quando três tiros de fuzil atingiram a casa de sua família.
“Apesar de todos os sentimentos que vem à tona quando estamos em momentos ruins, sobre desistir, sobre estar tão cansada por trabalhar e estudar ao mesmo tempo, tenho o pensamento que tudo será recompensado. E, de certa forma, o Museu da Vida me deu muito do que tenho até agora”, destaca ela, que a partir de março vai conciliar o curso noturno na Unirio com o trabalho no Serviço de Educação do Museu da Vida Fiocruz.
