A simplicidade formal da edificação construída em 1904 para abrigar a criação de pequenos animais utilizados na nascente produção de soros e vacinas no Brasil, na hoje centenária Fiocruz, chamou a atenção do arquiteto Antônio Pedro Gomes de Alcântara (1926-1999), responsável por inúmeros processos de restauração e preservação de bens de áreas urbanas, como a recuperação e a valorização de Paraty (RJ) e Alcântara (MA).
Após analisar o pedido de tombamento do Conjunto Arquitetural de Manguinhos e de seu entorno imediato, Alcântara fez menção ao antigo biotério, em documento enviado ao Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, atual Iphan, de 17 de novembro de 1980. Avaliou que o autor do projeto, Luiz Moraes Júnior (1867-1955), superou “as limitações de seu tempo” e considerou que a “purificação” da forma adotada no biotério, “reduzida a seu âmago geométrico”, estava associada à reformulação da linguagem arquitetônica no início do século 20.
A construção que tanto despertou o interesse do arquiteto logo será vista apenas parcialmente no campus da Fiocruz em Manguinhos, zona norte do Rio de Janeiro. Mas o motivo é alvissareiro. Estará, em breve, cercada por tapumes coloridos, que anunciam uma boa nova: o antigo biotério, mais conhecido como Pombal, será restaurado pelo Departamento de Patrimônio Histórico da Casa de Oswaldo Cruz (COC/Fiocruz) e inserido no circuito de visitação do Museu da Vida Fiocruz.
A obra de restauração do Pombal integra o Plano de Requalificação do Núcleo Arquitetônico Histórico de Manguinhos, que busca preservar e valorizar o patrimônio cultural da instituição – testemunho de importantes momentos da história nacional – e ampliar o diálogo com a população e a cidade, por meio de maior oferta de atividades socioculturais, de divulgação científica e de educação em ciência, tecnologia e saúde.
Formado por oito construções circulares, divididas em gaiolas, agrupadas em dois pátios simetricamente dispostos ao redor de uma Torre Central, o Pombal é cercado por um muro vazado e sinuoso, com elementos cerâmicos, que acompanha o desenho dos pequenos pavilhões. Destaque no conjunto são os elementos decorativos em argamassa da torre, entre os quais, o corrimão da escada, que traz a técnica de rocaille, um revestimento que representa elementos da natureza, como folhas e galhos de árvores.
Além de espaço expositivo, o Pombal será transformado novamente em lugar de convívio da Fiocruz e da comunidade. Para tornar o lugar mais confortável do ponto de vista climático, parte da pavimentação será substituída por gramado. Além disso, serão realizadas intervenções na quadra na qual a edificação está inserida, com a plantação de novas árvores, favorecendo, assim, a redução da temperatura. “A ideia é que este seja também um lugar de relaxamento, para se estar, dar uma descansada, conectar-se com a natureza”, detalha Maria Cristina Coelho Duarte, arquiteta do Departamento de Patrimônio Histórico, uma das responsáveis pela fiscalização técnica da obra.
No “espaço que gira”, oficinas culturais, peças, festas e troca de ideias
Ao longo de sua história de mais de 100 anos, o antigo biotério já foi palco de um período de intensa conexão, no início da década de 1990. Na ocasião, Olga D’arc se inspirou no parecer do arquiteto Antônio Pedro Gomes de Alcântara sobre a edificação e também em sua própria percepção diante dos pequenos pavilhões para criar o Pombal Gira, um movimento que transformou a rotina do local e é lembrado até hoje com entusiasmo e certo saudosismo.
Pombal nas primeiras décadas do século 20. Foto: Acervo Fiocruz.
“Na época, a construção foi considerada revolucionária, com aquelas formas arredondadas. Havia uma ideia de movimento. Lá dentro do espaço, eu pensei: esse espaço gira mesmo. Se você olhar de qualquer ângulo, ela tem um movimento impressionante. Veio daí a ideia de Pombal Gira,” conta a socióloga, que, durante a entrevista por telefone, comemorou as boas novas sobre o Pombal. “É uma forma de preservar o patrimônio e ampliar o conhecimento sobre o local. Muita gente da Fiocruz passa por ali e nem conhece o espaço”, avalia.
A ideia é que [após a intervenção que está em curso], o espaço seja também um lugar de relaxamento, para se estar, dar uma descansada, conectar-se com a natureza
Moradora da zona rural de Manaus desde 2006, em uma casa flutuante que, no período de seca, fica ancorada à margem da reserva de desenvolvimento sustentável do Tupé, habitada por indígenas de diversas etnias, Olga conta que o espaço estava praticamente abandonado quando surgiu a ideia do Pombal Gira.
“Queríamos resgatar a história do biotério de uma maneira diferente, transformando o espaço em um ponto de encontro e de atividades culturais, pois cultura é fundamental”, diz. A socióloga, que ingressara na Fiocruz para trabalhar como assessora da presidência, na gestão de Sérgio Arouca (1985-1989), e depois veio para a Casa de Oswaldo Cruz (COC/Fiocruz), queria reconfigurar o espaço, dando ao local uma feição de “campus universitário, onde se passa o dia inteiro”.
E assim foi. Olga e um pequeno grupo, do qual faziam parte servidores como André Malhão, da Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio (EPSJV/Fiocruz), e Rita Mattos, do Centro de Estudos da Saúde do Trabalhador e Ecologia Humana, da Escola Nacional de Saúde Pública Sérgio Arouca (Ensp), organizaram várias atividades, tornando o lugar um concorrido ponto de encontro.
“Foi um momento de integração muito grande, com peças teatrais, oficinas de arte, apresentações de música, em uma delas, levamos o Sérgio Ricardo [1932-2020]. Fizemos feiras artesanais, em parceria com moradores do entorno, uma festa junina, na qual promovemos um casamento coletivo interunidades, a Casa de Oswaldo Cruz, por exemplo, casou-se com a Ensp. Muita gente se envolveu. Foi intenso enquanto durou”, avalia Olga, aposentada da Fiocruz desde 2008.
Chefe do Departamento de Patrimônio Histórico, o arquiteto Renato Gama-Rosa, na Fiocruz desde 1987, recorda da agitação gerada pelo Pombal Gira: “Foi uma iniciativa da Olga. Lembro bem que havia atividades na hora do almoço”, diz.
Naquele momento, o uso como biotério se limitava a poucos pavilhões, onde se realizavam pesquisas com galinhas, e a edificação passava por uma transição. Na avaliação do arquiteto, foi interessante o uso dado ao local pelo Pombal Gira: “O espaço foi aproveitado como estava. E isso é uma forma de manter um patrimônio com aquelas características, onde não se pode fazer intervenção pesada, que acaba danificando ou alterando as condições originais”.
Pombal Gira tornou o antigo biotério um ponto de encontro. Foto: Acervo Fiocruz.
Os novos planos para o Pombal também incluem aproveitar o potencial do espaço para atividades ao ar livre, frisa Gama-Rosa. “Esse projeto agora quer deixar a arquitetura mais solta, mais livre, sem tantas intervenções, buscando as cores originais. Vai ficar bem agradável”, destaca o arquiteto, acrescentando que o projeto valoriza a acessibilidade ao incluir uma rampa, em formato de oito, que interliga todos os pequenos pavilhões.
“O grande mérito foi estimular o uso do Pombal como espaço cultural”
André Malhão, que também ingressou na Fiocruz em 1987, compondo o grupo responsável pela formulação e implementação do Curso Técnico de Nível Médio em Saúde, na Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio (EPSJV), festejou a novidade sobre o Pombal e voltou no tempo, enumerando as diferentes atividades realizadas no local.
O Pombal Gira foi precursor dessa aproximação [da Fiocruz] com as comunidades. A ideia da cultura como elemento agregador e socializante saiu dali. Foi um período de muita energia boa e de troca de ideias
“Foi um período de efervescência. O espaço foi usado para várias atividades artísticas, além de confraternizações, edições do Fiocruz pra Você, atividades da Colônia de Férias da Creche da Fiocruz. O grande mérito da iniciativa da Olga foi estimular o uso do Pombal como espaço cultural”, lembra.
Malhão também escolheu a edificação para sediar aulas inaugurais e encerramento de ano letivo da EPSJV. “Lembro que fizemos uma abertura de ano escolar, com recital de poesia, encenação, música, dança. As estudantes subiam no telhado dos pavilhões e declamavam poemas. A então secretária estadual de Educação esteve presente. Havia muita gente assistindo, pais, convidados externos, corpo docente, gente da presidência”, rememora.
Ele observa que a Poli, como é chamada a EPSJV, desde a sua origem contrariava a visão dominante de que formação técnica deveria ser restrita. “Não abríamos mão das disciplinas relacionadas às artes. E o Pombal, de alguma forma, comunica isso, pois foi construído com uma função técnica e depois incorporou outra função, em diálogo com o ambiente, com a arte, com a cultura.
Alunos da Escola Politécnica Joaquim Venâncio no Pombal. Foto: Arquivo pessoal/Elaine Vieira.
Também organizadora do Pombal Gira, Rita Mattos avalia que, na época, a cultura tinha pouco espaço na Fiocruz: “As unidades se mobilizavam muito, mas em torno das questões da saúde. Então, formou-se esse grupo meio independente e criou o Pombal Gira. A Asfoc [Sindicato dos Trabalhadores da Fiocruz] apoiou a iniciativa durante um tempo, e esse grupo trouxe uma revitalização do espaço do Pombal. Havia uma organização, um esforço de logística e um movimento diário. A torre do Pombal era o nosso ’escritório’, onde colocamos um banner, com a identidade visual do movimento, uma mandala colorida. E as festas eram sensacionais. Foi um movimento muito agregador e interessante, movimentou demais a Fiocruz. As pessoas iam para lá na hora do almoço”, recorda. Também promoveram diversas oficinas, como pintura em cerâmica, teatro, violão clássico, canto, yoga. “A oficina de canto é a origem do Coral da Fiocruz. E chegamos a trazer o Teatro do Oprimido para o Pombal Gira. O Augusto Boal (1931-2009) deu duas ou três oficinas. E o bloco da Fiocruz também nasceu ali”.
Segundo Rita, com a realização de obras de manutenção no Pombal e mudanças na diretora da Asfoc e na presidência da Fiocruz, o movimento, que era independente, arrefeceu. “O Pombal Gira foi precursor dessa aproximação com as comunidades. Além disso, a ideia da cultura como elemento agregador e socializante saiu dali. Foi um período de muita energia boa e de troca de ideias, que, às vezes, não cabiam nas discussões políticas. Na época, os debates ainda eram muito duros politicamente, era um período pós-ditadura. Ainda existia muita dor. E o Pombal Gira foi um refreshment”.
Exposição do Museu da Vida Fiocruz e cursos de qualificação
A intervenção no Pombal constitui a segunda e última fase do contrato assinado em 2018 entre a Fiocruz e o Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES), no valor de R$ 10,4 milhões. Parte dos recursos já foram destinados à Cavalariça, prédio tombado pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan) em 1981, onde foi inaugurada, em maio do ano passado, uma exposição de longa duração com recursos interativos, intitulada Vida e saúde: relações (in)visíveis.
Pombal visto de cima, em 2014. Foto: Peter Ilicciev.
A obra vai reunir diversos tipos de serviços – drenagem, arqueologia, restauração arquitetônica, infraestrutura elétrica, iluminação, educação patrimonial, paisagismo, produção audiovisual, divulgação científica, visitação – e agrupar, além das atividades realizadas por empresa contratada, o trabalho de profissionais de diferentes áreas da Casa de Oswaldo Cruz: enquanto o Departamento de Patrimônio Histórico se encarrega dos projetos, da obra e dos cursos, o Museu da Vida Fiocruz elabora a exposição a ser inaugurada no Pombal.
Além de destacar o valor histórico do Pombal, a mostra visa estimular reflexões sobre a complexidade das questões ambientais e de saúde, bem como a busca por futuros sustentáveis para a promoção da vida
A nova mostra, que enfoca o tema Saúde, Ambiente e Sustentabilidade, vai ocupar os pavilhões e áreas do entorno da edificação. “Além de destacar o valor histórico do Pombal, a mostra visa estimular reflexões sobre a complexidade das questões ambientais e de saúde, bem como a busca por futuros sustentáveis para a promoção da vida. Aparatos interativos e atividades artísticas buscarão criar um ambiente lúdico e propício ao diálogo sobre os tópicos abordados”, detalha Rosicler da Silva Neves, do Museu da Vida Fiocruz. A exposição também inclui uma trilha histórico-ecológica, com roteiros novos e variados.
O próprio Pombal vai se tornar objeto de prática para capacitar profissionais da área, voltados a atividades relacionadas à intervenção. Serão realizados três cursos de qualificação, que integram o Programa de Educação Patrimonial vinculado à obra de restauração da edificação. Com 24 vagas cada, eles vão abordar a arqueologia em sua relação com sítios e jardins históricos; a conservação e restauração de alvenarias e argamassas históricas e técnicas de conservação e restauração de elementos construtivos e ornamentais em cerâmicas.
Ministrados na Oficina Escola de Manguinhos, os cursos são destinados a profissionais da Fiocruz, trabalhadores da obra de restauração do Pombal e sociedade em geral. Também estão incluídos no programa, oficinas de capacitação sobre a mitigação de riscos para as equipes da obra e sobre sítios históricos/arqueológicos para mediadores de visitas guiadas no campus; e visitação ao canteiro de obras.
Para registrar, em audiovisual e texto, a importância da conservação do Pombal e das demais edificações do Núcleo Arquitetônico Histórico de Manguinhos, há uma série de ações previstas, também inseridas no Programa de Educação Patrimonial: vídeos, painéis informativos e dois livros para a série Guias do Patrimônio Cultural da Fiocruz.
As atividades de educação patrimonial fazem parte de uma proposta educativa continuada realizada pela Casa de Oswaldo Cruz, por meio de seu Serviço de Educação Patrimonial. “São ações que levam em conta que o patrimônio cultural é um dos elementos da cidadania contemporânea, e que investir em sua preservação significa também criar mercado de trabalho e construir conhecimento. Preservar o patrimônio cultural é, assim, uma forma de favorecer a equidade social, garantindo a todos o direito de expressão e acesso aos bens sociais e ao patrimônio cultural brasileiro”, destaca Maria Luisa Gambôa Carcereri, do Serviço de Educação Patrimonial.
A restauração do Pombal, a nova exposição e o Programa de Educação Patrimonial são uma realização da Casa de Oswaldo Cruz (COC/Fiocruz), do Ministério da Cultura e do Governo Federal, com gestão cultural da Sociedade de Promoção da Casa de Oswaldo Cruz (SPCOC). Conta ainda com o apoio financeiro do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES) e patrocínio de Instituto Vale, BASF, Enauta e Bayer, por meio da Lei Federal de Incentivo à Cultura.