No início de 1985, o soro antiofídico praticamente desapareceu dos hospitais e postos de saúde do país, quando a multinacional responsável por grande parte da produção nacional do imunobiológico encerrou as atividades no Brasil. Usado para neutralizar toxinas, em casos de acidentes com animais peçonhentos, à época estimados em cerca de 70 mil por ano, o produto salvava vidas. Sem ele, casos de mortes e de amputações de pernas e braços começaram a pipocar na imprensa, causando um temor generalizado. Problemas no abastecimento de outros imunobiológicos aumentaram a pressão da opinião pública. Foi nesse cenário que o governo federal criou o Programa de Autossuficiência Nacional em Imunobiológicos (Pasni), fundamental na estruturação de um parque industrial na área e na redução da dependência de importações.
É extremamente importante que os países constituam seus parques industriais, suas estruturas de vigilância e de atenção primária e especializada […]. O que vimos na pandemia de Covid-19 foi uma guerra. Abandonamos a África, por exemplo. Os nossos profissionais de saúde foram lutar contra a Covid-19 sem os instrumentos de proteção.
O episódio, relatado pelo historiador Carlos Fidelis Ponte, pesquisador da Casa de Oswaldo Cruz (COC/Fiocruz), revela que o Programa Nacional de Imunizações (PNI), além de ter eliminado e controlado enfermidades que causaram milhares de vítimas, como a poliomielite e a varíola, trouxe na esteira outro ganho: a montagem e ampliação do parque produtor nacional de imunobiológicos, embrião do que hoje conhecemos como Complexo Econômico Industrial da Saúde, cuja agenda foi retomada em abril.
Criado há 50 anos, em setembro de 1973, e reconhecido pela Organização Mundial da Saúde (OMS) como referência em política pública de imunização, o PNI faz parte da vida de milhões de brasileiros, observa Ponte, numa relação que se inicia no dia de nascimento e acompanha outras fases da vida, até a velhice, com a oferta gratuita, via Sistema Único de Saúde (SUS), de 48 diferentes imunobiológicos. O programa também foi fundamental na criação da vigilância epidemiológica e de mecanismos para garantir a qualidade dos seus produtos. Apesar da vital importância do programa, a disseminação de notícias falsas sobre imunizantes, especialmente ao longo da pandemia de Covid-19, tem contribuído para a redução da cobertura vacinal no país.
O historiador rememora outros episódios na trajetória do PNI e destaca a ligação entre a institucionalização da iniciativa, o surgimento do movimento sanitarista, a criação do Centro Brasileiro de Estudos de Saúde (Cebes) – que ele preside desde o início deste ano – e do SUS. O elo que une esses importantes momentos da história da saúde do país é o entendimento de que a saúde é direito de todos e dever do Estado, diz Ponte. O conceito ampliado de saúde, acrescenta, também faz parte dessa trajetória comum.
“Está no discurso do (Sérgio) Arouca na 8ª Conferência Nacional de Saúde, em 1986, quando ele diz que saúde não é só ausência de doença, é também ausência do medo do desemprego, do medo do abandono, do medo da violência, do medo do futuro. Então, a saúde está relacionada a uma cidadania efetiva, plena, ligada a condições dignas de vida para todos”, ressalta o pesquisador, frisando a necessidade de o país ampliar investimentos no parque industrial da saúde, em busca da independência do mercado externo. Desde o desabastecimento do soro antiofídico, em 1980, o Brasil deu muitos passos nessa direção e tem dois laboratórios públicos, Bio-Manguinhos, da Fiocruz, e Instituto Butantan, na lista dos 15 produtores mundiais de vacina, segundo levantamento da OMS. Mas a falta de ventiladores pulmonares, anestésicos, máscaras e insumos para a produção de vacinas durante a pandemia mostrou que o Brasil ainda tem um longo caminho pela frente. Confira, abaixo, os principais trechos da entrevista.
Quando o PNI foi criado, vivia-se em um Brasil sob a ditadura e sem o SUS. Que fatores você citaria como determinantes para o surgimento dessa política pública?
O PNI surge na esteira da estratégia que a gente chama de campanhista, que previa ser possível prevenir, controlar e até mesmo erradicar uma doença por meio de campanhas de imunização e da eliminação dos vetores, como ratos, mosquitos e pulgas. Isso foi aplicado por Oswaldo Cruz lá no início do século 20, no combate à peste bubônica e à varíola. Essa estratégia foi vitoriosa, mas não se sobrepõe, por exemplo, à existência de postos de saúde e de outras ações. O PNI vem a partir do sucesso da Campanha de Erradicação da Varíola.
No PNI, à época, havia uma estratégia considerada mais importante de vacinação?
Existia uma tensão entre aqueles que defendiam a vacinação nos postos de saúde e os que apoiavam a lógica campanhista. Há uma dicotomia entre rotina e campanha que, a meu ver, é falsa, pois as duas estratégias são importantes e são complementares. O PNI e as campanhas do PNI se utilizam bastante das estruturas usadas na vacinação de rotina e até incentiva a criação dessas estruturas. Mas também não dá para fugir da lógica da campanha em emergências, como ocorreu no começo da década de 1970, com a epidemia de meningite. O que o PNI faz é uma amarração nacional. O Dia Nacional de Vacinação é um momento de congraçamento e também um momento de juntar a campanha com a rotina, porque é quando você atrai a população para o posto de saúde.
Hoje em dia, a compreensão de que a saúde não é exclusivamente um fenômeno biológico, está mais disseminada, embora tenha sido algo colocado na época do surgimento do PNI, do movimento sanitarista, da criação do Cebes e do SUS.
Exatamente. É o que chamamos de conceito ampliado de saúde. Está na Declaração Universal dos Direitos Humanos, de 1948, e foi adotado pelo Cebes, cujo lema é saúde é democracia, democracia é saúde. Está no discurso do (Sérgio) Arouca na 8ª Conferência Nacional de Saúde, em 1986, quando ele diz que saúde não é só ausência de doença, é também ausência do medo do desemprego, do medo do abandono, do medo da violência, do medo do futuro. Então, a saúde está relacionada a uma cidadania efetiva, plena, ligada a condições dignas de vida para todos.
Que outros ganhos o PNI trouxe, além do controle e da erradicação de doenças?
Um episódio nos anos 80 demonstrou a dependência do Brasil em relação à produção de imunobiológicos. Foi um problema com a multinacional que respondia por grande parte da produção nacional do soro antiofídico e que também produzia vacina DTP. Começou quando o Ministério da Saúde suspendeu a comercialização dessas vacinas, pois o INCQS [Instituto Nacional de Controle de Qualidade em Saúde] da Fiocruz, criado para fiscalizar imunizantes usados pelo PNI, detectou uma irregularidade. Não chegava a ser um problema que causaria morte. A empresa disse que resolveria a questão, mas achou melhor ir embora do país do que promover mudanças necessárias. Isso gerou um problema de abastecimento de soros antiofídicos e de vacinas. No caso do soro, um problema difícil de resolver, pois ele é preparado a partir de espécies de cobra da região. Não adianta pegar um soro feito em outro país e aplicar aqui. São outras espécies de serpente. A falta do produto causou um problema gravíssimo, em 1985. A imprensa passou a noticiar casos de óbitos e de amputação de pernas e braços. Na década de 1970, estimavam em cerca de 70 mil acidentes com animais peçonhentos ao ano. Foi criado, então, o Programa de Autossuficiência Nacional em Imunobiológicos. E havia o Instituto de Tecnologia e Imunobiológicos, Bio-Manguinhos, da Fiocruz, que logo que foi criado assinou contrato de transferência de tecnologia com o Instituto Mérieux para produzir vacina contra meningite. Então, o PNI ajuda a estruturar também a plataforma de ciência e tecnologia brasileira e a estratégia de forçar a transferência de tecnologia que hoje em dia está na base na de Complexo Econômico-Industrial da Saúde. Outro ganho do PNI é a estruturação da vigilância e do controle de qualidade, com o INCQS.
Essas estruturações foram importantes. Vimos durante a pandemia de Covid-19 como Bio-Manguinhos, da Fiocruz, e o Butantan responderam à crise com a produção de vacinas contra o Sars-CoV2. Ao mesmo tempo, o Brasil sofreu com a falta de ventiladores pulmonares, máscaras, anestésicos.
Há muito que os sanitaristas alertavam para diminuição do tempo entre uma pandemia e outra. Isso por causa do avanço da fronteira sobre nichos ecológicos antes equilibrados associado à integração mundial de mercados. Hoje você vai de um continente ao outro em 12 horas e, se a doença for assintomática, ela se espalha mais rapidamente, como ocorreu com a Covid-19. Então, é extremamente importante que os países, o Brasil, constituam seus parques industriais, suas estruturas de vigilância e de atenção primária e especializada, tudo isso como um grande sistema de vigilância e promoção e proteção à saúde, porque o que vimos na pandemia de Covid-19 foi uma guerra. Abandonamos a África por exemplo. Os nossos profissionais de saúde foram lutar contra a Covid-19 sem os instrumentos de proteção. Precisamos do Complexo Econômico-Industria da Saúde, porque ele não está relacionado exclusivamente a vacinas e a medicamentos. Tem também prótese, testes de diagnóstico, diagnóstico por imagem, válvulas…
Com todos os avanços, ainda sofremos o impacto do negacionismo, com a disseminação de notícias falsas sobre vacinas.
Você tinha o chefe do Executivo nacional dizendo que a vacina era coisa de comunista e que se você tomasse vacina ia virar jacaré e ter um chip inserido dentro de você. Foi uma produção industrial de mentiras. Como dizia Darcy Ribeiro, a ignorância no país não é acaso, mas um projeto. Isso com o intuito de manter a população na ignorância e fazer campanha contra um instrumento da mais alta relevância na saúde pública. Gerou-se uma tensão entre o direito individual e o direito coletivo. Qual o direito que você tem de mandar o seu filho para a creche com suspeita de meningite? Não se trata só de negacionismo, como se o negacionismo fosse só uma questão de crença.
A vacinação é um fenômeno complexo, da biomedicina, mas não só, pois também é impactada por questões socioculturais. Pensando nisso, qual a importância da historiografia sobre o tema?
Aprendemos na graduação em História três grandes chaves de interpretação da sociedade: política, econômica e cultural. Quando me aproximei da Fiocruz, percebi que a saúde e a ciência também são chaves muito importantes para a interpretação da sociedade. E nisso a Casa de Oswaldo Cruz, entre outras instituições, têm um papel de grande relevância para mobilizar essas chaves e atrair pessoas para isso. Há também instituições como a Abrasco, que trabalha com saúde coletiva, e o próprio Cebes, que trabalha no sentido de promover esse ensino e uma reflexão crítica, fornecer instrumentos para que as pessoas possam olhar a conjuntura ou o mundo que ela vive com capacidade analítica. Nós no Cebes defendemos a inclusão do conceito ampliado de saúde no Ensino Médio, para as pessoas se apropriem dos seus direitos e da discussão do que significar ser cidadão.
Como tem sido esses primeiros meses à frente do Cebes?
O Cebes é um centro de reflexão, análise e de formulação de políticas pública. Além disso, também vive um momento em que é preciso mobilizar a sociedade na defesa dos seus direitos. Então, a minha gestão busca trabalhar em duas pontas: com os acadêmicos e com os movimentos sociais. Acredito que se não tivermos esses movimentos sociais organizados vai ser difícil resistir à onda neofascista da extrema direita. E o que eu tenho visto no país é uma vontade enorme de participar. Estou percorrendo os estados e montando núcleos para dar capilaridade ao Cebes. Para nós é interessante que esse conceito ampliado de saúde não seja exclusivamente do Cebes da Abrasco, da Fiocruz, dos sanitaristas. É preciso que adotem essa compreensão o movimento negro, o MST, o movimento dos sem-teto, as escolas, as associações de moradores. Tem que ser adotado e defendido pela sociedade.