Livro aborda a história da enfermidade no país, onde ela virou questão de saúde pública antes de ser expressiva do ponto de vista epidemiológico
Arte: Elias Sousa |
Segunda causa de morte no país, segundo o Instituto Nacional de Câncer (INCA), as neoplasias malignas são um problema de saúde pública – também em nível global, considerando os 18 milhões de casos e os 9,6 milhões de óbitos registrados em 2018. Cenário bem diferente do registrado no Brasil no início do século passado, quando mal se conhecia a doença no país. Apesar da baixa incidência, acabou se tornando um problema médico e de saúde pública a partir da atuação de uma elite de profissionais da área interessados em seguir a tendência do campo na Europa e nos Estados Unidos, onde os números do câncer já eram significativos. Para isso, os médicos associaram a enfermidade ao processo civilizatório e ao desenvolvimento.
“Para justificar essa diretriz, elaboraram um discurso que previa a ampliação dos índices da doença vis-à-vis ao processo de modernização do país”, escrevem os historiadores Luiz Antonio Teixeira e Luiz Alves Araújo Neto, na introdução do livro História do Câncer no Brasil, publicado pela Hucitec Editora. A baixa incidência no país era, pois, considerada pelos médicos que escreviam sobre o tema como temporária ou reflexo das dificuldades de notificação. O desenvolvimento, diziam, nos levaria a patamares significativos.
Por um lado, tem essa ideia de uma memória do projeto; por outro, há também a tentativa de traçar uma paisagem atual da pesquisa sobre câncer. Tentamos mostrar o que tem daqui para frente, porque a doença e o lugar do câncer na sociedade têm mudado nos últimos quinze anos, e o campo de estudos sobre o câncer nas ciências humanas também
Resultado de uma parceria entre a Fundação Oswaldo Cruz e o Instituto Nacional do Câncer (Inca) e com financiamento da Fundação Carlos Chagas de Amparo à Pesquisa do Estado do Rio de Janeiro (FAPERJ), a obra é também fruto de um processo coletivo mais longo, quando a linha de pesquisas sobre história do câncer foi incorporada à Casa de Oswaldo Cruz (COC/Fiocruz), em 2007, iniciando seu processo de institucionalização.
O livro reúne alguns dos textos mais significativos da agenda de pesquisa sobre o câncer na área da história, além de debater as perspectivas sobre os estudos da doença no Brasil, onde, a partir da virada do século 19 para o 20, o câncer era analisado sob o viés das doenças infecciosas, em evidência naquele contexto.
"Havia um grande debate na época, uma grande incerteza, se o câncer era uma doença infecciosa ou não. A doença era vista, então, com algumas similaridades à hanseníase e à sífilis, por exemplo, principalmente porque os tipos de câncer identificados eram os cânceres visíveis, como câncer de pele ou de mama", diz Luiz Alves, que organizou o livro em parceria com Luiz Antonio, seu orientador de mestrado e doutorado no Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde (PPGHCS) da COC/Fiocruz.
Bolsista de pós-doutorado e pesquisador do Observatório História de Saúde (OHS) da COC/Fiocruz, Luiz Alves explica que somente a partir da década de 1930 e 1940 aparece a figura do cancerologista, um especialista que reuniria todos os conhecimentos sobre a doença para realizar o diagnóstico e o tratamento: "É a partir de então que você tem de maneira mais clara o câncer como objeto da medicina brasileira, com agendas mais específicas, com o mote central que era preciso detectar o câncer cedo para poder ter um tratamento eficaz".
Sobre a entrada do câncer na agenda da saúde pública, Luiz Antonio, pesquisador da COC/Fiocruz e coordenador do projeto “História do Câncer: Atores, Cenários e Políticas Públicas”, cita a criação do Serviço Nacional do Câncer nos anos 1940 como um marco, mas enfatiza que a demarcação do processo é mais controversa entre os especialistas.
Destinado ao público acadêmico e não-especializado, o livro se divide em três partes: detalha os primórdios dos estudos sobre câncer no país, analisando como o tema é inserido na agenda do campo médico; discute como práticas de controle de câncer do útero se desenvolveram no Brasil de maneira específica, a partir da influência da medicina alemã, e do uso da colposcopia, além dos debates sobre a especialização médica; e, por fim, foca nas ações de controle no âmbito da saúde pública, especialmente para o câncer de colo de útero e o câncer de mama.
A importância da História para as possibilidades de controle do câncer
Na obra, os autores apontam que, desde 1990, já se sabe que a mortalidade por câncer decorre não só de fatores biológicos, mas também as condições de vida e da qualidade do sistema de saúde. E chamam atenção para a importância das ciências sociais, e, em especial, da história, que, ao analisarem os processos que vêm fazendo com que diferentes grupos sociais “estejam mais protegidos ou vulneráveis à doença, contribuem para “uma leitura mais ampla do câncer e de suas possibilidades de controle”.
A transformação do câncer em objeto de estudos nas Ciências Sociais em geral, e na História, em particular, acompanha a própria atenção ao câncer como um problema social, nos anos 1980 e 1990, na Europa e nos Estados Unidos. De acordo com Luiz Alves, somente a partir dos anos 2000 que a agenda se especializa, com pesquisas sobre o desenvolvimento de campos disciplinares, conhecimentos e tecnologias médicas no século XX:
"Aí você tem tanto a multiplicidade dos estudos, que vão começar a discutir cânceres específicos, como câncer de mama e de pulmão, mas também traçam aspectos particulares de uma história do câncer em relação a outras doenças. Até então, o que se tinha eram grandes narrativas sobre o câncer e, a partir dos anos 2000, formula-se uma agenda mais específica", comenta.
No Brasil, um dos marcos iniciais e mais importantes sobre os estudos do câncer na área da história é a criação do projeto História do Câncer em 2007, parceria entre a Casa de Oswaldo Cruz e o Inca, liderada por Luiz Antonio. Conectada desde então às linhas de pesquisa do Departamento de Pesquisa em História das Ciências e da Saúde (Depes) e do PPGHCS, a pesquisa sobre o câncer na COC se institucionalizou e durou cerca de quinze anos, com o incentivo a novos estudos de mestrandos e doutorados, o incremento da produção intelectual e parcerias internacionais.
"Essas iniciativas pioneiras tornam o projeto de história do câncer parte da agenda da Casa de Oswaldo Cruz e, levando em conta que era o único grupo consolidado naquele momento, o único grupo que estava trabalhando com câncer de forma mais sistêmica, ele se torna o ponto de referência sobre esse tema no Brasil", afirma Luiz Teixeira.
De acordo com o pesquisador da COC, um dos objetivos do livro História do Câncer no Brasil é justamente sedimentar a longa experiência do grupo de pesquisa da Fiocruz e os esforços realizados que consolidaram o câncer na historiografia brasileira nos últimos anos. A obra, porém, não visa apenas a reconstituir a memória deste grupo de pesquisa, mas seguir adiante, com sugestões de novos temas e caminhos que estão em alta na atualidade.
Entre novas agendas, a experiência do adoecimento e a dimensão quantitativa
"Decidimos reunir textos que considerava significativos dessa trajetória e que também demarcassem a agenda de pesquisa que foi sendo desenvolvida ao longo dos anos. Por um lado, tem essa ideia de uma memória do projeto; por outro, há também a tentativa de traçar uma paisagem atual da pesquisa sobre câncer. Tentamos mostrar o que tem daqui para frente, porque a doença e o lugar do câncer na sociedade têm mudado nos últimos quinze anos, e o campo de estudos sobre o câncer nas ciências humanas também", assinala Teixeira.
Apesar de o câncer ainda ocupar um lugar pontual na historiografia brasileira das doenças, em razão da tradicional concentração de estudos na área das doenças infectocontagiosas, Luiz Alves afirma que as doenças crônicas como um todo, e o câncer especificamente, fornecem agendas de pesquisa fundamentais para os historiadores. Ressaltam-se, por exemplo, o câncer de mama e o câncer do colo do útero, que têm destaque no livro e apresentam interfaces importantes entre saúde, gênero e sexualidade.
"O câncer é uma doença que tem um potencial muito grande de pesquisa e um dos objetivos do livro é apresentar todas essas temáticas para um público que também não conhece essa produção historiográfica. A gente aponta três agendas no final do livro que considera importantes. Uma é o estudo sobre a experiência do adoecimento. A outra diz respeito ao estudo da dimensão quantitativa, cada vez mais presente no pensamento em saúde. A terceira é a preocupação com a atuação dos movimentos da sociedade civil na saúde. Eu acho que nesses três pontos o câncer tem muito a contribuir, tem muito a ser estudado", completa.