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Ciência foi fundamental na preservação da Amazônia, mas também contribuiu para a exploração da região

Em texto que integra livro sobre o Antropoceno na América Latina, pesquisadoras da Casa fazem reflexão ética sobre esse papel ambivalente do conhecimento científico

Karine Rodrigues

21 nov/2024

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Em 1848, o naturalista Henry Walter Bates (1825-1892) chegou à Amazônia brasileira com o intuito de estudar a sua história natural. Permaneceu na região durante 11 anos e coletou mais de 14 mil espécies de insetos, das quais 8 mil foram consideradas novas para a ciência e enviadas para instituições britânicas. Assim como ele, vários outros naturalistas se aventuraram na floresta tropical, atraídos por sua biodiversidade. 

Os estudos empreendidos por Bates, entre outros viajantes, cientistas, naturalistas e cronistas europeus e neoeuropeus, na Amazônia é narrada em capítulo do livro Biodiversity – Handbook of the Anthropocene in Latin America II, publicado, em agosto de 2024, na série The Anthropocene as Multiple Crisis: Perspectives from Latin America da Bielefeld University Press. Neste volume, autores e autores das áreas de ciências sociais e humanas da América Latina dedicam-se à análise das crises ambientais que estão envolvidas nas transformações biotermodinâmicas sem precedentes na história geológica do planeta, e que têm sido reunidas por estudiosos sob o conceito de Antropoceno. 

Na publicação, as historiadoras Magali Romero Sá, Dominichi Miranda de Sá e Lorelai Kury, pesquisadoras da Casa de Oswaldo Cruz (COC/Fiocruz), refletem sobre o papel da ciência na região no período entre 1850 e 1950. O texto reúne estudos realizados no âmbito de projetos de pesquisa desenvolvidos na COC, entre os quais o que analisa a Amazônia como microcosmo do Antropoceno, sob a coordenação do pesquisador André Felipe Cândido da Silva. 

As autoras mostram que a ciência participou da “mercantilização da biodiversidade e de sua integração nas cadeias globais de comércio e biopirataria, no uso unilateral do conhecimento indígena e na forte propaganda para transformar a floresta em terra arável”, enquadrando a região como um espaço para enriquecimento dos impérios coloniais e, mais adiante, do Estado brasileiro. Por outro lado, evidenciam como a ciência permeou “os principais processos de compreensão e circulação internacional do conhecimento sobre a dinâmica ecológica da Amazônia”, definindo o papel da região na regulação do clima global por meio do armazenamento e sequestro de carbono e dos seus ciclos hidrológicos.  

“Fazemos uma reflexão ética sobre esse papel ambivalente das ciências. Como é que participaram da construção de conhecimento da megabiodiversidade amazônica, mostrando o quanto ela é importante para o próprio equilíbrio ecológico planetário e deve ser protegida. Mas, ao mesmo tempo, discutimos os processos pelos quais o conhecimento científico também contribuiu para a sua superexploração econômica. Mostramos ainda como essas ciências e cientistas interagiram historicamente com os saberes indígenas dessa mesma região, e como foram absolutamente cruciais para a própria produção do conhecimento científico. Julgamos que esta reflexão é vital na contemporaneidade: qual é a responsabilidade socioambiental dos conhecimentos científicos? Há outros saberes e coletivos que devem cooperar com as ciências na emergência climática?”, observa Dominichi. 

Coletas de milhares de espécies para os mais destacados museus da Europa 

Bates, por exemplo, desenvolveu um importante trabalho na área de Entomologia e contribuiu para a aceitação da teoria da seleção natural de Darwin por meio de sua pesquisa sobre mimetismo em insetos amazônicos. Seu companheiro de viagem, Alfred Russel Wallace (1823–1913) observou durante o período de permanência na Amazônia que cada área incluía espécies endêmicas e que elas são impactadas de formas diversas por intervenções como desmatamentos e incêndios. “Esse entendimento faz parte dos debates atuais sobre o Antropoceno, com o impacto significativo que a biodiversidade amazônica vem sofrendo devido à sua exploração econômica agressiva”, diz o texto.   

Outro naturalista britânico, Richard Spruce (1817–1893), que desembarcou no país no ano seguinte à chegada de Bates e Wallace, também fez intensa bioprospecção na região amazônica. Com foco na flora, extrapolou a fronteira do Brasil para explorar os territórios da Venezuela, Peru e Equador. A principal tarefa de Bruce era coletar material para o Royal Botanical Garden, Kew, instituição criada em 1759 e cujas coleções botânicas foram reconhecidas como Patrimônio Mundial pela UNESCO. Passou quinze anos explorando a Amazônia e os Andes, entre 1849 e 1864, 

“Spruce recebeu instruções do diretor de Kew, William Hooker (1785-1865), sobre coletar produtos vegetais úteis e artefatos indígenas de valor econômico para o recém-criado Museu de Botânica Econômica em Kew”, relatam as autoras. Ao longo de 15 anos, Spruce coletou cerca de 14 mil espécimes botânicos e 350 artefatos etnobotânicos e fez observações sobre práticas nativas no uso de plantas, reconhecendo seu potencial econômico.  

O texto expõe também como os cientistas e viajantes que foram até a região se apoiaram nos saberes locais para construírem conhecimento sobre a Amazônia e, muitas vezes, acabaram por invisibilizá-los no processo de circulação e publicação de suas produções científicas. 

‘A ciência tem que ser ética, responsável e se justificar socialmente’ 

As autoras chamam atenção para o fato de que a análise do papel da ciência nas dinâmicas do Antropoceno está na contramão de um sentimento anticientífico: “Vemos muita resistência, como se estivéssemos fazendo um discurso de ataque à ciência. Ao contrário! Imaginamos que essa discussão fortalece a ciência, pois precisamos refletir sobre os efeitos dos saberes e resultados que produzimos. Achamos que a ciência tem que ser ética, responsável e, ao mesmo tempo, justificar-se socialmente”, enfatiza Dominichi.  

Ao destacar a importância do diálogo com a sociedade, ela chama atenção para a necessidade de a ciência se abrir para os saberes indígenas, historicamente invisibilizados, apesar da grande contribuição dada no conhecimento sobre a Amazônia. “Se essa parceria já existiu e produziu esse conhecimento tão importante que mostra, no caso da Amazônia, o quanto ela é importante para a regulação climática do planeta, por que agora, que nos vemos na iminência de tempos tão hostis, não vamos reconhecer esses saberes que produzem e preservam biodiversidade?”, pergunta a historiadora.  

Segundo ela, várias áreas do conhecimento têm buscado dar visibilidade aos conhecimentos indígenas, num movimento que reúne, especialmente, a Antropologia, a História e a Arqueologia. Cita também como sinal de valorização dos saberes originários o fato de Davi Kopenawa Yanomami, importante liderança indígena, xamã, ter sido eleito para a Academia Brasileira de Ciências (ABC), uma das mais relevantes instituições científicas brasileiras. “Ele está cooperando nessa discussão sobre mudanças climáticas. Há muitas resistências porque acabamos reputando uma certa visão de que a ciência ocidental é o único modo autorizado de conhecer o mundo, quando há outros saberes com os quais podemos e devemos fazer alianças para o debate sobre as mudanças climáticas”, acrescenta Dominichi. 

A Casa de Oswaldo Cruz e o tema das mudanças climáticas 

Sobre as contribuições da América Latina para a produção de conhecimento relacionado ao Antropoceno, Dominichi considera que as áreas de história ambiental e de história das ciências têm produzido reflexões importantes. 

Essas confluências serão discutidas em simpósio internacional sobre mudanças climáticas e desafios planetários, a ser realizado em julho de 2025 na Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Será o 12º Simpósio da Sociedade Latino-americana e Caribenha de História (SOLCHA), evento que conta também com organização da Fiocruz, por meio da Casa de Oswaldo Cruz, UFRJ, Jardim Botânico e PUC-Rio, e apoio do Museu do Amanhã.  

Segundo Dominichi, além de o país ter uma tradição nas discussões sobre o tema, uma vez que realizamos, por exemplo, a Rio 92, vamos receber também a COP 30, já que a Amazônia mobiliza cientistas, intelectuais, movimentos sociais e ativistas climáticos do mundo inteiro: “A COC está participando ativamente da realização do evento internacional sobre mudanças climáticas e também da organização de uma mostra de filmes sobre o protagonismo indígena no ativismo climático contemporâneo, sob a coordenação da pesquisadora Stela Penido, e que será exibida antes do simpósio da SOLCHA, no Rio, e como atividade pré-COP 30, em Belém”. 

Na Casa de Oswaldo Cruz, as discussões sobre questões ambientais, de maneira geral, e do Antropoceno, em particular, tem ganhado cada vez mais espaço. Além de grupos de pesquisa e da participação na organização de eventos internacionais, há uma agenda de cursos já estabelecida, tanto para a pós-graduação como para os demais interessados no tema. Em 2025, haverá a 6a edição do curso livre sobre o Antropoceno, com foco em paisagens tóxicas, e ainda a segunda edição do curso sobre história dos saberes e ciências do clima. Também está previsto o lançamento de um livro sobre o Antropoceno, com a participação de professores do curso desde a sua primeira edição em 2019.