O tema do Encontro às Quintas do dia 1º de setembro foi baseado no livro A Biologia Militante: o Museu Nacional, especialização científica, divulgação do conhecimento e práticas políticas no Brasil, 1926-1945, da historiadora Regina Horta Duarte, que tem como fio condutor a história do Museu Nacional do Rio de Janeiro, privilegiando as articulações entre práticas científicas e vida política, a especialização da biologia, e as experiências de divulgação científica. Três personagens são o foco da autora, os cientistas do Museu Nacional: Edgar Roquette-Pinto, Alberto Sampaio, e Cândido de Mello Leitão.
Regina Horta Duarte. Foto: Vinícius Pequeno
Entre os documentos que Regina Horta encontrou na sua pesquisa está uma entrevista do aracnólogo Mello Leitão, em que este relata que havia recebido uma encomenda do ministro Francisco Campos (Governo Getúlio Vargas) de um anteprojeto do Código de Caça e Pesca, cujo decreto foi publicado em 02/01/1934. “Não se tratava de proibir a caça e a pesca porque eram importantes para alimentação sertaneja, faziam parte da fonte alimentar do homem brasileiro, mas se fossem feitas de forma predatória não poderiam ser mantidas, então, era preciso elaborar normas de regulação e comercialização”, disse a historiadora.
Segundo Regina Horta, esse grupo desejava ser o responsável pela orientação científica das leis voltadas para preservação da natureza e “lançaram a ideia de natureza como patrimônio nacional”. O Museu Nacional tinha grande capacidade de ser difusor de ciência para crianças e adolescentes, procurando criar um novo perfil de brasileiros em relação à natureza. “É muito surpreendente para a época o discurso desses cientistas pela clara sistematização e articulação, mas não diziam nada de muito novo se pensarmos que Emílio Goeldi já havia denunciado o comércio de garças em 1895”. A diferença está no lugar de onde estão falando esses cientistas, explicou ela, porque o Museu Nacional vinha adquirindo, desde o decorrer da década de 1920, um grande reconhecimento científico. Localizado na capital da República, vinha adquirindo legitimidade junto ao governo, como prova a incumbência para a redação do anteprojeto do Código de Caça e Pesca.
No momento em que o Código é decretado a situação é gravíssima, disse Regina. A exportação de peles, couros e penas de animais do Brasil para a Europa é intensa e gera riqueza para as camadas altas dos núcleos urbanos mais abastados. “Estamos na Bella Époque, e o Brasil importa chapéus e estolas produzidos com a matéria-prima extraída do próprio país”. A palestrante ainda relatou que as notícias sobre caça e pesca são divulgadas como “gosto de aventura”, a caça é considerado um esporte civilizado, fino, praticado por políticos, governantes e pela alta sociedade. Portanto, uma lei que regulasse a caça e a pesca significava contrariar costumes e interesses econômicos estabelecidos.
De acordo com Regina, os três cientistas ganharam tamanho status a ponto do poder instituído conferir a eles autoridade para fazer o Código, e fizeram de suas pesquisas ferramentas para a construção de uma identidade nacional. Apresentam-se como biólogos, e não como coletores da História Natural, contribuindo para tornar a Biologia um saber politicamente importante, completa ela. Ainda não havia cursos de Biologia, mas este campo do conhecimento estava em evidência, disse Regina Horta, porque naquele momento acontecia um debate sócio-político sobre a eugenia, a biomedicina, a entomologia médica e agricultura. “Faziam parte dos debates parlamentares e da sociedade, por exemplo, as discussões sobre imigração européia, branqueamento da população brasileira e o mendelismo” (a Teoria de Mendel foi redescoberta em 1900 e passou a ser considerada a mais consistente para explicar a herança genética. De um lado, apontava que certas características biológicas dominam sendo que outras ficam “ocultas”, recessivas; e, de outro lado, contrariava a crença lamarckiana de que as características adquiridas por um indivíduo durante sua vida poderiam ser herdadas por sua prole).
Os avanços da biomedicina, técnicas de saneamento, produção de soros e vacinas contra as pestes, criação de instituições e as expedições científicas de Manguinhos vão revelar uma população brasileira abandonada. Portanto, os cientistas ganham na República um papel essencial, e vão constituir uma posição crítica contra as formas de organização da sociedade. As doenças humanas exigem também conhecimentos faunísticos, ecológicos, biogeográficos, então surgem profissões como botânicos, ornitólogos, antropólogos. “A biologia passou de contemplativa a militante para viabilizar a nação, o povo”, enunciou Regina Horta ao explicar o título da palestra.
Público assiste à palestra de Regina Horta. Foto: Vinícius Pequeno
Além de atuarem no Museu Nacional, Roquette-Pinto, Alberto Sampaio e Mello Leitão estavam conectados com o conhecimento gerado no mundo à época e se dedicaram à produção e divulgação científica, inclusive montaram uma sala de cinema no Museu para exibição de filmes educativos realizados na instituição. Roquette-Pinto foi sóciofundador da Academia Brasileira de Ciências, membro fundador da Academia Brasileira de Educação (ABE) e participou da organização da Rádio Sociedade do Rio de Janeiro. Mello Leitão trabalhou com Roquette na Escola Normal do RJ. Já Sampaio também era membro da ABE e participou da Rádio. Tanto Roquette quanto Sampaio participaram em momentos distintos de viagens feitas por Marechal Rondon no interior do Brasil. O Museu Nacional era, portanto, uma instituição em rede com várias outras iniciativas.
A hipótese da historiadora é que o Governo Vargas chegou a ver no Museu Nacional uma instituição que poderia contribuir para um novo Estado que se opusesse à omissão do Estado liberal, por ele criticado. O Museu era uma instituição com um diferencial pedagógico, com iniciativas de difusão científica, que ensinava as crianças sobre a vida vegetal e animal do lugar onde moravam, promovendo uma nova perspectiva em relação à natureza.
A partir de 1934, contudo, na gestão de Gustavo Capanema no Ministério da Educação e Saúde, esses cientistas perderam espaço e o Museu Nacional deixa de ganhar centralidade como lugar de produção de conhecimento biológico e de articulador de políticas públicas. “Advogo que aqueles cientistas tiveram a ousadia de se autointitularem biólogos. A profissão de biólogo só foi regulamentada em 1979”, finalizou a historiadora.
A palestrante do Encontro às Quintas creditou seu trabalho de pesquisa à produção científica da Coc. “É inestimável o conhecimento produzido pela Casa nas teses e dissertações do Programa de pós-graduação, no Dicionário Histórico-Biográfico das Ciências da Saúde no Brasil 1832-1930, no trabalho organizado pelas pesquisadoras Nísia Trindade e Dominichi de Sá sobre as Revistas da Academia Nacional de Medicina, nos artigos da Revista História, Ciências, Saúde – Manguinhos”.
Regina Horta Duarte tem mestrado (1988) e doutorado em História pela Universidade Estadual de Campinas (1993). É professora titular da Universidade Federal de Minas Gerais e editora-chefe da Historia Ambiental Latinoamericana y Caribeña, revista da Sociedade Latino Americana y Caribenã de História Ambiental (SOLCHA), cujo primeiro número será lançado em setembro (www.fafich.ufmg.br/halac). Além de artigos em periódicos especializados, publicou, entre outros livros, A imagem Rebelde (1991), Noites Circenses: espetáculos de circo e teatro em Minas Gerais no século XIX (1995) e, no ano passado, A Biologia Militante: o Museu Nacional, especialização científica, divulgação do conhecimento e práticas políticas no Brasil, 1926-1945.
Regina Horta consulta dados da sua pesquisa. Foto: Vinícius Pequeno