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Encontro às Quintas: A América Latina mestiça de Picón Salas

08 out/2013

Um marco no processo de elaboração e consolidação da nova história cultural latino-americana. A expressão foi usada pelo historiador Jorge Myers para se referir à obra De la Conquista a la Independencia, publicada em 1944 pelo venezuelano Mariano Picón Salas (1901-1965). Professor da Universidad Nacional de Quilmes (Buenos Aires, Argentina), Myers participou no dia 19 de setembro do Encontro às Quintas, onde discutiu o tema La historia cultural como ciencia de la sociedad: Mariano Picón Salas y su obra en el contexto de los debates culturales latinoamericanos en los años 1940.

Com amplo trânsito pelos meios cultural, acadêmico e político de seu país e do Chile, onde passou parte de sua vida, Picón Salas abandonou a até então usual comparação sistemática com a produção cultural e civilizatória européia para buscar entender a americana. “A história cultural da América Latina, a partir dessa decisão de pôr entre parênteses a europeia, se lhe apresentava como um sistema que podia se estudar em função de uma lógica própria de desenvolvimento”, afirmou Myers.

Essa nova visão se sustentou em duas noções: a existência de um “complexo social” latino-americano e o conceito de “transculturação”. A primeira era entendida como as formas próprias de interpretar o mundo de uma época e de uma sociedade específicas. Já o segundo conceito, tomado do antropólogo cubano Fernando Ortiz, era uma contraposição ao termo de origem anglo-saxônica “aculturação”. A ideia era de que esse novo termo expressava melhor as diversas fases do processo transitivo entre uma cultura e outra, uma vez que não consistia apenas em adquirir uma cultura diferente, diferentemente do indicava o vocábulo aculturação.

Segundo explicou Myers, para Picón Salas, o choque de culturas que representou a conquista dos europeus constituía um momento de fusão, de transculturação, que produziria uma cultura nova sobre a base da combinatória dos elementos culturais originais aportados pelos espanhóis, os africanos trazidos como escravos e os indígenas subjugados. O venezuelano afirmava que a cultura ibero-americana era essencialmente mestiça.

Em sua obra, Picón Salas fez uma análise do transplante do barroco europeu para o solo americano. Na avaliação de Myers, a novidade na análise de Picón Salas sobre esse processo foi a observação de que, ao cruzar o Atlântico, esse estilo tornou-se “exuberantemente criativo”. O autor venezuelano escrevera que aquilo que na Espanha era sinônimo de estancamento e hermetismo, na América tornou-se manifestação de crescimento e de abertura, ao incorporar elementos indígenas.

Transculturação em solo americano

Myers explicou que De la conquista a la independencia explora a história cultural hispano-americana em função das distintas modalidades que a transculturação de crenças, práticas e objetos assumiu em solo americano. Nesse processo, em alguns casos o elemento indígena ou africano – pertencente à cultura dos dominados – foi decisivo. Em outros, foi o europeu que prevaleceu, ainda que modificado pelo seu contato com a realidade do outro, avançando do transplante de formas renascentistas espanholas e sua modificação até chegar na eclosão de uma cultura ilustrada na América Latina no fim do século 18 e início do 19.

De acordo com Myers, Picón Salas se converteu em porta-voz de uma posição que sustentava a unidade cultural do continente ibero-americano. Frente aos reclamos – tão presentes na situação chilena nos anos 20 e 30 – por uma política e uma cultura cerradamente “nacionalistas”, Picón Salas opunha a visão alternativa de uma política e uma cultura “continentalistas”: o nacional, defendia ele, somente podia se desenvolver plenamente no interior da unidade cultural mais ampla que a Ibero-América constituía.

“Compreender o processo histórico pelo qual a cultura ibero-americana havia se desenvolvido resultava, pois, em um passo necessário para a tarefa ativa de construção de uma unidade ibero-americana mais ampla concebida por Picón Salas”, disse Myers. De acordo com ele, essa unidade era concebida, em um plano imediato, como uma restauração da comunicação entre as distintas elites intelectuais dos países latino-americanos, e, em um plano mais ambicioso, como a recriação da mítica unidade perdida que ele identificava com o projeto bolivariano.