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Em 1970, Art Spiegelman, então um quadrinista desconhecido de 22 anos, deixa Nova York rumo a São Francisco, na Califórnia, epicentro do movimento da contracultura, que buscava um tipo de vida à margem das normas do sistema oficial. Lá, ele encontra inspiração para um estilo narrativo que transformaria as histórias em quadrinhos (HQs), então dominadas pelos imbatíveis protagonistas da Marvel e da DC Comics e seus relatos de força e de poderes especiais.  

Spiegelman fez parte de um grupo de jovens artistas do underground estadunidense que utilizaram saberes psicanalíticos em suas narrativas marginais e transgressivas para desafiar as convenções sociais e as normas sexuais e legitimar críticas a instituições como família, polícia e religião, mirando na transformação da sociedade. Por meio da arte, procuraram construir os seus personagens com base na neurose, no inconsciente e no trauma, afetando a subjetividade de toda uma geração, observa Diego Luiz dos Santos, pesquisador em estágio pós-doutoral na Casa de Oswaldo Cruz (COC/Fiocruz), no artigo Holocausto, trauma e cultura psicanalítica: uma análise dos quadrinhos underground de Art Spiegelman, publicado recentemente. 

Artista sueco naturalizado norte-americano, Spiegelman foi na contramão das histórias de super-heróis invencíveis e, com base em ideias psicanalíticas, expôs traumas, falhas e angústias pessoais em obras como Prisioneiro do Planeta Inferno, no qual aborda o suicídio de sua mãe, e Maus – A história de um sobrevivente, baseado nas recordações de seu pai, judeu polonês, sobre o que vivenciou durante o Holocausto. “[…] Juntei as peças de minha própria psique: em vez de desenhar a violência mais chocante que se pode imaginar, eu devia identificar as atrocidades presentes no mundo real onde meus pais haviam sobrevivido e me criado”, observou o quadrinista.  

“A psicanálise serviu como uma forma de explicar a origem de grande parte das falhas e dos sofrimentos dos personagens dessas histórias. Apropriando-se de conceitos como ‘neurose’ e ‘recalque’, esses artistas se inspiraram em suas próprias experiências para criticar as instituições sociais de modo a apontar suas amarras como principais causadoras do sofrimento dos sujeitos na sociedade”, destaca o historiador, autor de tese no Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde (PPGHCS) da COC/Fiocruz sobre a circulação e a apropriação dos saberes psi psiquiatria, psicologia e psicanálise nos meios culturais populares. 

Refugiados do nazismo ajudaram a popularizar a psicanálise nos EUA  

Segundo ele, no Ocidente, e de forma mais acentuada após a Segunda Guerra Mundial, os conceitos psicanalíticos extrapolaram os consultórios e passaram a ser apropriados por meios científicos e populares e por diversos saberes, como o jornalismo, as artes e a publicidade. Várias foram as razões que levaram à popularização da psicanálise nos Estados Unidos a partir da primeira metade do século 20, observa Santos. Além da demanda de especialistas para o tratamento de traumas de guerra e do investimento governamental em movimentos de higiene mental que promoviam uma educação preventiva em relação a doenças mentais, contribuiu para a disseminação desse saber a fuga de muitos psicanalistas europeus para os Estados Unidos, em decorrência da ascensão do nazismo. 

O historiador usa o conceito de cultura psicanalítica para esclarecer o lugar ocupado pela psicanálise na cultura e na sociedade dos Estados Unidos. Criado na década de 1970 pela socióloga Sherry Turkle e depois sistematizado pelo psicanalista brasileiro Sérvulo Figueira, o termo define o fenômeno por meio do qual os sujeitos aderem a suposições da psicanálise até um ponto de quase saturação. “Isto faz com que ideias vinculadas a este saber passem a circular cada vez mais de maneira não-estruturada, tornando-se uma visão de mundo capaz de influenciar a produção do conhecimento acadêmico, o mundo artístico e até o funcionamento das instituições”, explica Santos, no artigo. 

Em Maus, traumas de guerra que podem atravessar gerações 

Em Trauma e neurose em HQs: a autobiografia de um judeu americano, capítul escrito em parceria com a psicanalista Cristiana Facchinetti, professora do PPGHCS, e faz parte de livro lançado em 2023 pela editora Fiocruz, o historiador analisa a obra de Spiegelman, em especial, Maus, único quadrinho a ser reconhecido pelo Prêmio Pulitzer, em 1992, concedido nos Estados Unidos a trabalhos de excelência em jornalismo, literatura e composição musical. Traduzida em dezenas de línguas e caracterizada pelo uso de metáforas, que retratam os judeus como ratos e os nazistas, como gatos, a obra é baseada em uma série de entrevistas que o autor, que se apropriou de ideias psicanalíticas na construção dos personagens e da narrativa, fez com o seu pai, Vladek. Foi publicada em várias edições, entre 1986 e 1991. 

“A HQ explora as maneiras pelas quais o sofrimento psíquico causado pelo Holocausto pode conformar o inconsciente dos sobreviventes e impactar nas gerações posteriores. Traz uma reflexão acerca das maneiras pelas quais as cicatrizes psíquicas podem atravessar gerações, debatendo sobre como os traumas de guerra podem interferir até mesmo na relação dos sobreviventes com seus filhos”, observam Santos e Facchinetti na publicação. 

Embora a maior parte da obra de Spiegelman tenha sido produzida no movimento underground, nas décadas de 1970 e 1980, por meio de revistas marginais, vendidas de maneira informal, o reconhecimento dele se deu, principalmente, a partir de Maus, considerado precursor dos quadrinhos alternativos. Herdeiro do underground, o novo gênero dele se diferencia por ter um caráter subjetivo e intimista, com narrativas mais longas e complexas e publicados por editoras de reputação. 

Temas como a relação entre o mal-estar dos sujeitos e a renúncia ao prazer foram recorrentes nas HQ’s underground publicadas entre 1960 e 1980, diz Santos. Nos quadrinhos de Robert Crumb, Art Spiegelman e Aline Kominsky-Crumb, por exemplo, percebe-se como um conjunto de ideias da psicanálise foram consideradas em histórias sobre famílias desequilibradas, responsáveis pelo mal-estar de seus filhos. 

Segundo o historiador, os artistas da contracultura buscaram inspiração no filósofo Herbert Marcuse (1898-1979), refugiado do nazismo alemão, nome de referência em um movimento que buscou conciliar a teoria de Sigmund Freud às teses de Karl Marx em um projeto de transformação social. Ele criticava o conformismo e o modelo de família nuclear patriarcal, apontado como uma das principais causas de sofrimento dos sujeitos. 

“De forma bem resumida, Marcuse dizia que renunciamos aos nossos desejos mais profundos em nome da civilização, mas esse recalque de alguma maneira aumenta o mal-estar. Ele estava falando de prazer sexual e do prazer do dia a dia, de você viver e se divertir. Considerava que não podemos viver para trabalhar e que poderíamos construir uma nova civilização mais voltada ao prazer, que é a questão de Freud, e sem exploração, tema discutido por Marx. Isso influenciou muito a contracultura. As histórias em quadrinhos também estavam tentando construir esse novo mundo, menos repressor e pensando em um tipo de revolução que se daria também a partir do psíquico”, explica o historiador. 

A revolução dentro da revolução 

As ideias vindas da psicanálise, acrescenta Santos, inspiraram um movimento de liberdade sexual que impactou nas narrativas dos quadrinhos. Em Cultura psicanalítica e revolução sexual nas histórias em quadrinhos nos Estados Unidos dos anos 1970, o historiador detalha como a artista estadunidense Aline Kominsky (1948-2022) produziu e distribuiu HQ’s que contestavam as normas sociais estabelecidas e o modelo de família nuclear patriarcal e buscava ressignificar a sexualidade. Aline contribuiu para a primeira edição de Wimmen’s Comix, em 1972, com uma HQ intitulada Goldie: uma mulher neurótica. Quando criança, ela se sentia amada pela família e pelos professores e querida por todos no colégio, mas, na adolescência, precisou encarar a feiura e a culpa.  

Segundo o historiador, Aline visava denunciar também o próprio machismo dentro do underground. “Em algum momento, a contracultura começou a ser feita muito em termos masculinos e isso acabou gerando uma revolução dentro da revolução. Várias mulheres se revoltaram e assim surgiram os primeiros coletivos feministas de histórias em quadrinhos no movimento underground”, relata Santos.  

Envolvido mais recentemente em pesquisas sobre trauma e refugiados no pós Segunda Guerra Mundial, Santos segue atento às HQ’s. Aguarda pelo próximo lançamento de Spiegelman, que, junto com Joe Sacco, autor de Palestina, vai produzir uma obra sobre a Faixa de Gaza e o conflito armado Israel-Palestina, iniciado em outubro de 2023, após um ataque do Hamas que matou 1.200 israelenses. Desde então, a ofensiva de Israel já resultou na morte de mais de 46 mil palestinos, segundo autoridades de saúde locais. Muitas das vítimas são mulheres e crianças.