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‘A fome é uma marca fundamental da história republicana brasileira’

Artigo analisa história do combate à situação crônica de falta de alimentos no país, destacando papel das políticas públicas e dos movimentos sociais 

Karine Rodrigues

15 maio/2024

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Quando a noite cai em uma das principais ruas de Copacabana, na zona sul do Rio de Janeiro, a movimentação nas calçadas se transforma. É a hora em que a procura por comida e fonte de renda no lixo produzido em prédios e estabelecimentos comerciais fica mais intensa. São restos de alimentos e material reciclado. É o que tem para hoje. E para amanhã também.  A fome no Brasil, importa lembrar, não começou com a pandemia de Covid-19 – embora tenha se agravado durante a crise sanitária – e nem acabou com o fim da Emergência de Saúde Pública de Importância Internacional referente novo coronavírus, declarado, em maio do ano passado, pela Organização Mundial da Saúde (OMS).  

Presente de Norte a Sul do país, a fome é uma marca fundamental da história republicana brasileira, defendem Rômulo de Paula Andrade e Gabriele Carvalho de Freitas, em artigo publicado na Tempo & Argumento, da Universidade do Estado de Santa Catarina (UDESC). “O período em que a situação de fome não foi um elemento presente no Brasil é uma exceção”, escrevem os autores, que fazem referência ao intervalo de 2014 – quando saímos do Mapa da Fome da Organização das Nações Unidas (ONU) – a 2022, ano em que voltamos a integrar a lista de países onde a situação crônica de falta de alimentos atinge mais de 2,5% da população. 

“A partir dos anos 30, todos os governos no Brasil – de direita e de esquerda, ditatoriais e democráticos – têm como uma de suas metas o combate à fome, a partir de programas, como o de alimentação escolar, um dos mais antigos do país. Então, a história da fome é uma marca do Brasil República porque é no Brasil República que começa a se criar o sentido moderno do que é a fome, e, principalmente, a se ter noção de que há meios para combatê-la”, diz o Rômulo, pesquisador do Departamento de Pesquisa em História das Ciências e das Saúde (Depes) e professor do Programa de Pós-graduação em História das Ciências e da Saúde (PPGHCS) da Casa de Oswaldo Cruz.  

O sentido moderno, explica o historiador, surge no século 20. Vista como um fenômeno naturalizado, a fome passa a ser enquadrada de uma nova maneira, a partir do consenso científico em relação a vitaminas e proteínas, consideradas um meio para combatê-la.  

Para traçar uma história da luta contra a fome no Brasil, destacando o período em que o país saiu do Mapa da Fome e, depois, vivenciou um aumento da pobreza e piora dos índices sociais, Rômulo e Gabriele, nutricionista, doutora em Saúde Coletiva e consultora técnica em alimentação e nutrição do Ministério da Saúde, analisaram balanços recentes realizados por agências não governamentais, paraestatais e movimentos sociais sobre a fome no Brasil e retrospectivas históricas feitas por especialistas na área. 

Além disso, realizaram entrevistas de história oral com três importantes atores no combate à fome no país: Tereza Campello, ex-ministra do Desenvolvimento Social durante o primeiro e o segundo governo de Dilma Rousseff; Rodrigo “Kiko” Afonso, diretor executivo da ONG Ação da Cidadania contra a Fome; e João Pedro Stédile, diretor do Movimento dos Trabalhadores Sem Terra (MST). O artigo foi escrito em 2022.  

“Via brasileira de combate à fome” 

Segundo os autores, a “descoberta” da fome se deu após a Segunda Guerra Mundial, período em que se iniciaram o processo de independência das antigas colônias e as disputas da Guerra Fria. Outros fatores também contribuíram para aumentar o interesse pelo tema: “Os inquéritos realizados pelas agências internacionais no ano seguinte ao conflito (como o World Food Survey da Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura, FAO, na sigla em inglês); o crescimento populacional nas décadas de 1950 e 1960, que despertou inquietações sobre a capacidade de suprir as demandas nutricionais daquele novo contingente, e as querelas ideológicas envolvendo os países pobres, vistos como lugares possíveis de disseminação de ideias comunistas”. Fome, afinal, é exclusivamente uma questão de contagem de calorias? Existem duas linhas de explicação sobre a fome no cenário contemporâneo, diz o artigo: uma associada à dimensão biofísica e aos conceitos clínicos; e outra relacionada às condições socioeconômicas e políticas.  

Segundo Rõmulo, o Brasil tem uma particularidade, por ele intitulada de via brasileira de combate à fome, e que surge, principalmente, “com a interpretação de que a fome é fruto da pobreza, da desigualdade e de questões históricas, como latifúndio e monocultura”, explica o historiador, acrescentando que esse entendimento teve uma influência muito grande sobre a atuação dos movimentos sociais e de especialistas como Josué de Castro (1908-1973) e Dante Costa (1912-1968), entre outros. “É a ideia de que para se vencer a fome, não basta dar vitaminas e proteínas, mas promover a possiblidade de mudança na vida da pessoa. Isso é uma marca desse combate à fome no Brasil. É a nossa particularidade enquanto país mobilizador dessas políticas públicas”. 

Mobilização social: marchas da Fome e da Panela Vazia  

O artigo apresenta as políticas públicas de combate à fome realizadas no Brasil, detalhando a sua particularidade e importância, mas chama atenção para um traço permanente na história republicana, caraterizado pelas ações desenvolvidas pela sociedade civil e os movimentos sociais:  

“O combate à fome não se deu apenas via Estado”, escrevem os autores, citando três episódios que eles consideram importantes “para se pensar a relação entre a fome e carestia como elementos de mobilização social”. Além da “Marcha da Fome”, em janeiro de 1931, organizada pela Confederação Geral dos Trabalhadores do Brasil, e “fortemente   reprimida   pelas   polícias   estaduais”; o Movimento Custo de Vida e Contra a Carestia’ e as ‘Marchas da Panela Vazia’, criados no final da década de 1970. 

Ao longo do século 20, especialmente a partir do fim dos anos 1970 e na década seguinte, houve uma mobilização efetiva da sociedade civil em torno do tema, observam Rômulo e Gabriele: “Desde as primeiras lutas pela redemocratização brasileira, a forma de abordar o assunto por parte das políticas públicas se alterou de forma significativa, sendo, em muitos casos, provocada pelos movimentos sociais que daquele momento participaram”. Em 1981, por exemplo, além de instaurada uma Comissão Parlamentar de Inquérito para investigar as causas do avanço da fome no país, foi criado o Instituto Brasileiro de Análises Sociais e Econômicas (Ibase), liderado sociólogo e ativista social Herbert de Souza (1935-1997), o Betinho, na época exilado político. 

A importância de programas estruturais 

O artigo traz também a percepção dos entrevistados sobre a saída do Brasil do Mapa da Fome, em setembro de 2014. A análise apontou que a população em situação de subalimentação, no período de 1990/2014 e 2002/2013, havia se reduzido em 82%. No início dos anos 2000, com a mudança de governo, a fome se tornou uma pauta de destaque, com ações como políticas de transferência monetária de renda, por exemplo, o Bolsa Família; a inclusão do direito à alimentação no artigo 6° da Constituição Federal; e a adoção de um novo sistema universal, o Sistema Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (SISAN). No mesmo período, a polarização política encontrava-se acirrada. 

Apesar de ter sido um feito histórico, a saída do Brasil do Mapa da Fome pouco repercutiu na imprensa, mostra o artigo. Em entrevista, Tereza Campello, no Ministério do Desenvolvimento Social e de Combate à Fome, observa que, embora o tema da fome fosse recorrente nos jornais, não houve eco. “…está na manchete do Brasil desde que tem manchete, desde que a mídia funciona no Brasil, a fome está, e quando você sai do Mapa da Fome isso não aparece em lugar nenhum […] hoje, por exemplo, todo mundo fala que saiu do Mapa da Fome, mas depois de toda uma guerra também nossa de ficar batendo nisso, que é uma palavra de ordem muito forte[…]” 

Para João Pedro Stédile, um dos fundadores do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), a recepção da notícia entre os integrantes dos movimentos sociais também causou estranhamento, mas por outra razão: “A nossa crítica aquele período mesmo virtuoso do Governo Lula e Dilma é que eles combateram a insegurança alimentar e de fato as pessoas não passaram fome, mas não criaram um programa estrutural, estrutural significa que se consolida. Tanto é que saíram do governo e a fome voltou. […]”, diz na entrevista, citando que a criação de mecanismos estruturais se dá via reforma agrária ou por políticas públicas.  

Dados mais recentes apontam que existem no Brasil 33,1 milhões de famintos 

Nos últimos anos, houve um agravamento da fome no país, não exclusivamente em razão da pandemia de Covid-19, mas devido a cortes orçamentários associados à adoção de políticas neoliberais, diz o artigo. Em 2019, ao assumir a presidência da República, Jair Bolsonaro extinguiu o Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (Consea), considerado um importante mecanismo de monitoramento, concepção e aprimoramento de políticas de segurança alimentar e nutricional, com atuação reconhecida pela FAO. O órgão foi recriado em fevereiro do ano passado. 

Dados mais recentes do inquérito da Rede Brasileira de Pesquisa em Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional (Penssan), aplicado em 2021 e 2022, apontam que existem no país 33,1 milhões de famintos, além de cerca de 126 milhões de pessoas em situação de insegurança alimentar e nutricional. Os indicadores da fome no país voltaram aos do início da década de 1990, aponta o artigo. 

Sobre o desmonte das políticas públicas de combate à fome, Rômulo observa que o Brasil, como quase todo país periférico, lida com a séria questão da instabilidade política, que impacta nas ações do Estado. Como exemplo, cita a atuação do médico pernambucano Josué de Castro, que mobilizou agências internacionais no enfrentamento da fome, mas foi cassado pelo ato institucional número 1, durante a ditadura militar; e o período em que o governo de Dilma Rousseff foi interrompido. “Instabilidade política significa aumento da segurança alimentar”, avalia Rômulo, que integra o Núcleo de Estudos da História da Alimentação e coordena a Biblioteca Virtual em Saúde História da Fome, Pobreza e Saúde, onde pode ser encontradas, na íntegra, as entrevistas realizadas para o artigo.