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Especial O Ministério da Saúde e o PNI | A cor da desigualdade: a Política de Saúde da População Negra

21 ago/2023

Roseli da Fonseca Rocha​​ (Cedipa)​*


 (Foto: Cassiano Ferraz/CRESS-SC)

Segundo dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD) Contínua, publicada pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), o número de pessoas negras, ou seja, que se autodeclararam pretas e pardas, constitui 56% do total da população brasileira em 2022 (IBGE, 2022b). Se pessoas negras são mais da metade da população do Brasil, essa magnitude também se reflete nos maiores abismos que se evidenciam nos indicadores em saúde.  

 O país, de maioria negra, ainda mantém fortes assimetrias raciais, expressas sob a perspectiva da violação dos direitos humanos. Tais violações remetem ao racismo estrutural em suas múltiplas dimensões, como a individual, institucional, religiosa, recreativa, ambiental entre outras manifestações de graves violências. Diante disso, precisamos evitar leituras aligeiradas, acríticas e sem a preocupação de uma análise mais substantiva acerca da visibilidade demográfica das pessoas negras.

E, nesse sentido, apresentamos alguns números mais recentes, reveladores das desigualdades relacionadas à população negra, sobretudo no contexto do direito à saúde.

Segundo estudos realizados pelo IBGE, [1] o acesso de diferentes grupos populacionais a bens e serviços básicos, tais como saúde, educação, moradia, trabalho e renda, tem sido desigual.  Em relação ao mercado de trabalho, nos cargos gerenciais, negros ocupam 29,5% dos cargos e brancos 69%. No que tange à situação de empobrecimento da população, pessoas vivendo abaixo da linha de pobreza, dos que recebem menos que US$ 1,90 por dia, 9% são pretos, 11,4% são pardos e 5% são brancos. Dos que recebem menos que US$ 5,50 por dia, 34,5% são pretos, 38,4% são pardos e 18,6% são brancos.

Em relação às taxas de homicídio no país, os dados são alarmantes. Segundo os dados do Atlas da Violência 2021, em 2019, as pessoas negras representaram 77% das vítimas de homicídios, com uma taxa de homicídios por 100 mil habitantes de 29,2. E entre os não negros (soma dos amarelos, brancos e indígenas) a taxa foi de 11,2 para cada 100 mil. Em relação às mulheres negras, os dados também revelam as desigualdades.  Elas representaram 66% do total de mulheres assassinadas no Brasil, com uma taxa de mortalidade por 100 mil habitantes de 4,1, em comparação à taxa de 2,5 para mulheres não negras (Cerqueira, Ferreira, Bueno, 2021, p. 49).

No âmbito da saúde, os estudos das Desigualdades sociais por cor ou raça no Brasil (IBGE, 2019) revelam a seguinte realidade:

Indicadores relacionados à cobertura de serviços de saneamento básico também apontam uma significativa desigualdade, segundo a cor ou raça. Em 2018, verificou-se maior proporção da população preta ou parda residindo em domicílios sem coleta de lixo (12,5%, contra 6,0% da população branca), sem abastecimento de água por rede geral (17,9%, contra 11,5% da população branca), e sem esgotamento sanitário por rede coletora ou pluvial (42,8%, contra 26,5% da população branca), implicando condição de vulnerabilidade e maior exposição a vetores de doenças (IBGE, 2019, p. 5).

Recorrendo à pesquisa realizada por Oliveira et al. (2020), que analisa os dados iniciais do impacto da pandemia da Covid-19 sobre a população negra, temos que:

Na proporção de hospitalizações e óbitos por Covid-19, observa-se que inicialmente nos brancos o percentual de internações e mortes foi maior quando comparado aos negros. Entretanto, no decorrer das Semanas Epidemiológicas (SE), identifica-se uma redução da proporção de óbitos e hospitalizações entre brancos. Em contrapartida, os óbitos e hospitalizações na população negra aumentam (Oliveira et al., 2020, p. 8).

Ainda sobre esses impactos, Silva e Silva (2021) apresentam as dificuldades encontradas pela população quilombola em ter acesso aos serviços de saúde:

situação tem se agravado uma vez que a Atenção Primária sempre foi precária, havendo mínima cobertura da ESF Quilombola e sendo esporádica a presença de médicos na maioria das comunidades, onde há muitas pessoas com doenças crônicas como hipertensão, diabetes e doença falciforme, que precisam de acompanhamento regular. Essas pessoas estão no grupo de risco para Covid-19, o que aumenta sua chance de morrer ao ter que buscar serviços de saúde nas áreas urbanas (Silva; Silva, 2021, p. 12).

No que tange à saúde da mulher negra, o Dossiê Mulheres negras e justiça reprodutiva, publicado pela ONG Criola, em 2021, que, a partir de dados nacionais e de regiões do estado do Rio de Janeiro, constata que são as mulheres negras a maioria dos casos de mortalidade, violências e de situações de aborto.

A mortalidade materna e o número de internações por abortamento são os índices mais expressivos: 65,9% das mortes maternas ocorrem entre mulheres negras. […] Na pandemia do novo coronavírus essa situação se agravou. O Brasil chegou a liderar mortes maternas por Covid-19 no mundo […] e as mulheres negras apresentam um risco de morte duas vezes maior comparadas às mulheres brancas […] (citado em Criola, 2021, p. 48; destaque meu).

Essas constatações não apenas revelam que as desigualdades raciais se manifestam em todas as esferas da vida das pessoas negras, elas também nos impelem a refletir e a dar respostas contundentes no âmbito da formulação e implementação de políticas públicas que busquem enfrentar os níveis alarmantes de iniquidades decorrentes do racismo.

A saúde está intrinsecamente relacionada com a condições de vida e processos de vulnerabilização advindos do racismo. E seu não enfrentamento potencializa a discriminação, violência, exclusão, sofrimento e iniquidades em todas as áreas da vida social. E isso reforça a urgência de que a Política Nacional de Saúde Integral da População Negra (PNSIPN) tenha centralidade na agenda do Sistema Único de Saúde (SUS) em todas as esferas governamentais e em consonância com o Estatuto da Igualdade Racial (Brasil, 20 jul. 2010).

Desafios e ações pela PNSIPN

O racismo e suas múltiplas expressões na saúde da população negra colocam ainda muitos desafios para a implementação da PNSIPN. Considerando que estes desafios ganham maior dimensão numa sociedade estruturalmente desigual, racista, heterossexista e capacitista, torna-se ainda mais premente o fortalecimento das lutas coletivas em defesa desta política.

Vale ainda ressaltar que a saúde da população negra, embora tenha sido pautada desde os anos 1980, durante a VIII Conferência Nacional de Saúde, e nos anos 1990, com a criação, pelo governo federal, do Grupo de Trabalho Interministerial de Valorização da População Negra e tenha ganho destaque maior ao ser incorporada ao relatório da 3ª Conferência Mundial contra o Racismo, Discriminação Racial, Xenofobia e Formas Correlatas de Intolerância, realizada em Durban, África do Sul (2001), sob a organização da ONU,  somente em 2006 a PNSIPN é aprovada pelo Conselho Nacional de Saúde. E apenas em 2009 é instituída pelo Ministério da Saúde a partir da publicação da Portaria GM/MS nº 992/2009. Com esta portaria, o Estado brasileiro reconhece o racismo, as desigualdades étnico-raciais e o racismo institucional “como determinantes sociais das condições de saúde, com vistas à promoção da equidade em saúde” (Brasil, 2009).

As iniquidades raciais na saúde têm sido historicamente alvo de denúncias e mobilizações organizadas por sujeitos sociais coletivos inseridos, sobretudo, nos movimentos negros e de mulheres negras. E é sob o protagonismo dessas organizações que a saúde da população negra ganha centralidade na arena de lutas por justiça social e equidade. No entanto, se os desafios para a sua elaboração foram enormes, são ainda maiores para a sua efetiva implementação e consolidação enquanto política pública de saúde. São diversos fatores que se colocam como obstáculos a sua materialização na vida concreta.

Passados 14 anos de sua promulgação, a PNSIPN ainda permanece tendo reconhecimento institucional, enquanto política pública, aquém de sua importância no que tange aos princípios preconizados pelo SUS, sobretudo, em relação à equidade na saúde. Exemplo disso é a desqualificação da importância da coleta do quesito raça/cor nos formulários de atendimento e de notificação em saúde. Embora a coleta seja obrigatória desde 2017, por meio da Portaria nº 344 do Ministério da Saúde, que dispõe sobre o preenchimento do quesito raça/cor nos formulários dos sistemas de informação em saúde, há ainda uma lacuna entre o que já se avançou no campo da legislação e a sua materialização na realidade desigual de acesso e atenção integral à saúde. A ausência ou a subnotificação dos dados relativos ao quesito raça/cor evidencia uma das expressões bastante contundentes do racismo institucional na saúde, assim como a pouca relevância dada ao conhecimento acerca da saúde da população negra nos processos de formação profissional das pessoas que atuam na política de saúde. A invisibilização da questão étnico-racial nos currículos das diversas áreas de conhecimento, tanto no âmbito da graduação quanto da pós-graduação e dos programas de educação permanente em saúde, revela o quão distante ainda está a efetiva implementação da PNSIPN.

Se, nos últimos anos, o país viveu sob fortes ataques à democracia e aos dispositivos legais de valorização e defesa da vida, nesses novos tempos, nascem novas esperanças de que dias melhores estão em construção. É o que se pode esperar com a criação, pelo atual Governo Federal, de ministérios como o da Igualdade Racial, dos Povos Indígenas, dos Direitos Humanos e da Cidadania, das Mulheres. E também, com a instituição, pelo Ministério da Saúde, da Assessoria para Equidade Racial em Saúde. Essas ações buscam enfrentar as desigualdades e assegurar a diversidade numa perspectiva de equidade. E isso é algo a ser celebrado. Contudo, para que essas ações alcancem êxito faz-se necessário, além dos esforços já empreendidos, que haja forte investimento de recursos e previsão orçamentária que assegurem a implementação de políticas concretas de mudanças estruturais dessa sociedade historicamente desigual. E, ainda sobre a PNSIPN, entre inúmeras ações para a sua real implementação, destacam-se a importância da reativação do Comitê Técnico da Saúde da População Negra e da elaboração do IV Plano Operativo de Saúde da População Negra, que tem entre seus objetivos a definição de metas e prioridades no processo de implementação da política.

Ainda com os olhos voltados para o horizonte desses novos tempos, a aprovação pela plenária da 17ª Conferência Nacional de Saúde, realizada em julho de 2023, das propostas decorrentes da Conferência Nacional Livre de Saúde da População Negra constitui importante indicativo de que estamos avançando no fortalecimento do SUS. E em direção à construção de uma nova sociedade, pautada pelo bem viver, onde o “amanhã será, de fato, outro dia”, mais justo e livre do racismo e de todas as formas de preconceito e discriminação.

*Roseli da Fonseca Rocha​​ faz parte da Coordenação de Equidade, Diversidade, Inclusão e Políticas Afirmativas (Cedipa) da Fiocruz.

é assistente social do Instituto Nacional de Saúde da Mulher, da Criança e do Adolescente Fernandes Figueira (IFF/Fiocruz).

[1] Estudos como Desigualdades sociais por cor ou raça no Brasil (IBGE, 2022a) e a Síntese de indicadores sociais (IBGE, 2021).
 

Referências:

BRASIL. Ministério da Saúde. Portaria nº 992, de 13 de maio de 2009. Institui a Política Nacional de Saúde Integral da População Negra. Brasília: Ministério da Saúde, 2009.

BRASIL. Lei nº 12.288, de 20 de julho de 2010. Institui o Estatuto da Igualdade Racial. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2007-2010/2010/lei/l12288.htm. Acesso em: 3 ago. 2023.

CERQUEIRA, Daniel; FERREIRA, Helder; BUENO, Samira (coord.) Atlas da violência 2021. São Paulo: Fórum Brasileiro de Segurança Pública, 2021.

CRIOLA. Dossiê Mulheres negras e justiça reprodutiva 2020-2021. Rio de Janeiro: Criola, 2021.

IBGE, Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. Estudos e pesquisas. Informação Demográfica e Socioeconômica, n. 41. Desigualdades sociais por cor ou raça no Brasil. Rio de Janeiro: IBGE, 2019.

IBGE, Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. Síntese de indicadores sociais. Rio de Janeiro: IBGE, 2021. Disponível em: https://biblioteca.ibge.gov.br/visualizacao/livros/liv101681_informativo.pdf. Acesso em: 3 ago. 2023.

IBGE, Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. Estudos e pesquisas. Informação Demográfica e Socioeconômica, n. 48. Desigualdades sociais por cor ou raça no Brasil. 2ª ed. Rio de Janeiro: IBGE, 2022a. Disponível em: https://biblioteca.ibge.gov.br/visualizacao/livros/liv101972_informativo.pdf. Acesso em: 17 jun. 2023.

IBGE, Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. PNAD Contínua – Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua: características gerais dos domicílios e dos moradores, 2022. Rio de Janeiro: IBGE, 2022b.

OLIVEIRA, Roberta Gondim et al. Desigualdades raciais e a morte como horizonte: considerações sobre a Covid-19 e o racismo estrutural. Cadernos de Saúde Pública, v. 36, n. 9, e00150120, 2020.

SILVA, Hilton P.; SILVA, Givânia M. A situação dos quilombos do Brasil e o enfrentamento à pandemia da Covid-19. In: Abrasco, Associação Brasileira de Saúde Coletiva. População negra e Covid-19. Rio de Janeiro: Abrasco, 2021. p.11-13.