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Pesquisa analisa exílio de refugiados do nazismo no Brasil, salvos com o apoio da diplomacia internacional e do Vaticano

Coordenada por Cristiana Facchinetti, investigação busca ampliar historiografia sobre o papel de exilados no projeto desenvolvimentista do Estado Novo 

Karine Rodrigues

05 abr/2023

Em 15 de maio de 1940, enquanto as forças armadas da Alemanha se aproximavam do Canal da Mancha, na França, consolidando o domínio no continente europeu, uma ideia surgiu entre um grupo de perseguidos pelo nazismo que tentavam conseguir visto de entrada no Brasil: fundar no país um empreendimento para fabricar e comercializar instrumentos de eletrotécnica, radiotécnica e eletromedicina e explorar invenções patenteadas. No ano seguinte, após muita negociação e expectativa, a Indústrias Técnicas Ltda (INTEC) abriu as portas em Juiz de Fora, cidade mineira em ascensão industrial.

Por trás da INTEC havia cerca de 50 indivíduos de diferentes nacionalidades e religião, sendo que 38 deles havia sido expatriado por razões raciais. A maioria entrou no Brasil com passaportes tchecos, como católicos “não-arianos”. Poucos sabiam pronunciar algumas palavras em português e eram quase todos completamente inexperientes em atividades fabris, pois, na Europa, atuavam em universidades, hospitais, redação de jornais, e em áreas como literatura, artes e filosofia. Constituíam o “Grupo Görgen”, em referência ao líder da empreitada, o historiador, politólogo e professor alemão Hermann Mathias Görgen.

Apesar da particularidade do serviço fabril, esse grupo fez parte de esforços ainda maiores de salvação dos expatriados, e que envolveu a diplomacia do Vaticano, comitês intergovernamentais e o governo brasileiro. Tais negociações permitiram que, entre 1940 e 1941, desembarcassem no Brasil cerca de 1.000 indivíduos com vistos permanentes. Entre cientistas, intelectuais e acadêmicos, havia nomes que se destacaram na cultura nacional, como o poeta, romancista e dramaturgo Ulrich Becher (1910-1990), o crítico literário Otto Maria Carpeaux (1900-1978), o tradutor Paulo Rónai (1907-1992) e o filósofo Vilém Flusser (1920-1991). Todos respiravam aliviados com a distância dos campos de concentração, mas haviam trazido muitos traumas na bagagem.

Internacionalização da pesquisa

Pesquisa coordenada por Cristiana Facchinetti, do Departamento de Pesquisa em História das Ciências e da Saúde (Depes) e professora do Programa de Pós-graduação em História das Ciências e da Saúde (PPGHCS) da Casa de Oswaldo Cruz (COC/Fiocruz), analisa o exilio desses refugiados de guerra. Intitulado Intelectuais, saberes e tecnologias na fuga do nazismo para o Brasil (1938-1953), o estudo reúne, além de Facchinetti, André Felipe Cândido da Silva e Marcus Vinicius da Silva, pesquisadores da Casa de Oswaldo Cruz; Francisco Carlos Teixeira da Silva, da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ)/Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF); Maurício Parada, da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio); Belinda Mandelbaum, da Universidade de São Paulo (USP); Pedro Munõz, da PUC-Rio/Universidade Livre de Berlim (Alemanha); e Karl Schuster, da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE)/Universidade de Vigo (Espanha).

Ulysses Pernambucano
Cristiana Facchinetti.  Foto: Arquivo pessoal

A pesquisa, iniciada em 2021, investiga o modo pelo qual redes europeias de resistência à Alemanha Nazista se cruzaram aos interesses de industrialização do Estado Novo (1937-1945). Por meio de estudos prosopográficos e de redes, os pesquisadores estão percorrendo vários caminhos. Investigam, por exemplo, a circulação e transferência de pessoas, conhecimentos, literatura, técnicas e tecnologias pelas fronteiras brasileiras e sua conexão com as relações entre o Brasil e a Europa; o papel do racismo científico para o estabelecimento das políticas migratórias no Brasil; as trajetórias de intelectuais e técnicos para o Brasil e suas  redes de apoio; e finalmente, o trauma do exílio e seus impactos na vida após a sobrevivência.

Pouco se sabe acerca do papel da trajetória dos indivíduos refugiados no projeto desenvolvimentista do Estado Novo, bem como sobre os detalhes da negociação da diplomacia transatlântica e multilateral que permitiu o salvamento das quase mil vidas que estamos estudando. A pesquisa, portanto, traz grandes contribuições à historiografia da imigração na Era Vargas ao se voltar para os diversos aspectos das experiências individuais e coletivas de migração e refúgio”, destaca Facchinetti.

O projeto é produto de uma série de esforços de internacionalização da pesquisa e do estabelecimento de redes de cooperação nacional e internacional que vêm permitindo a circulação bilateral de professores e alunos de pós-graduação desde 2010, com o estabelecimento de convênios entre a Fiocruz e a University College London e a Universidad Andrés Bello.  Entre 2021 e o ano passado, Facchinetti passou seis meses no Reino Unido, como bolsista Capes-Print, e realizou pesquisas em várias instituições, entre elas, London Metropolitan Archives, Imperial War Museums, Jewish Museum. Convidada em seguida como professora visitante para o Instituto de Estudos Latino-Americanos (LAI) da Universidade Livre de Berlim (em maio de 2022) e para a Universitá di Roma Tor Vergata (em junho de 2022), teve a oportunidade de visitar também diversas instituições de guarda de fontes arquivísticas na União Europeia, que possuem documentação sobre o grupo de 1.000 deslocados para o Brasil, como o Fundo do “Exílio no Brasil” da Biblioteca Nacional de Frankfurt e o acervo histórico do Vaticano.

A INTEC, diz a pesquisadora, foi fundamental para a concessão de vistos de residência e para o acolhimento desses exilados no país, em um momento de expansão do nazismo na Europa e de endurecimento das regras de entrada no Brasil, em especial para os judeus. A articulação para a obtenção do refúgio brasileiro se deu por meio de uma rede de ajuda política e assistencial criada pelo Comitê de Ajuda para Intelectuais Refugiados de Genebra, pela Caritas suíço, pelo Vaticano, pelo Governo da Checoslováquia no Exílio, por enviados da Liga das Nações, pela Igreja católica brasileira, os comitês judaicos locais de apoio aos refugiados e pela diplomacia brasileira.

Dimensão traumática 

A frente de investigação de Facchinetti, que é psicanalista e doutora em Teoria Psicanalítica, com pós-doutorado em História das Ciências e da Saúde, está relacionada à experiência do exílio e ao sofrimento do holocausto na vida dos  refugiados. Ela vai trabalhar com entrevistas e a documentação clínica que se encontra no Museu Judaico Brasileiro, em São Paulo, além de cartas e manuscritos sob a guarda da Biblioteca Nacional de Frankfurt.

“No capítulo, demonstro que muitos deles vieram para cá achando que o Brasil era um paraíso. Vieram muito otimistas. E aqui enfrentaram um governo fascista ainda com fortes laços com o Eixo, e sentiram na pele perseguições aos judeus, em um primeiro momento. Logo a seguir, sob o impacto da ruptura com a Alemanha e do início da guerra, e, falar alemão passou a ser considerado como marca nazista. Em seguida, foram considerados espiões e processados pelo Estado Nacional. Com o fim da guerra e o processo de redemocratização a partir de 1945, se sentiram mais confiantes. Muitos se nacionalizaram brasileiros. Mas aí veio a ditadura da década de 1960. As ameaças continuaram a acompanhá-los ao longo do sombrio século 20, resultando em novas migrações, novos enfrentamentos e novos adoecimentos físicos e mentais..Fato curioso é que esse grupo não contou a sua história, em grande parte nunca se disse judeu”, observa a pesquisadora, que também coordena um projeto de pesquisa com o Prof. Sonu Shamdasani em história transcultural das psicoterapias, através de um convênio entre a Fiocruz e a University College London (Reino Unido).

O programa da pesquisa se estende por três anos e propõe a construção de redes de investigação com pesquisadores de variadas áreas do conhecimento, em âmbito local, nacional e internacional. “A intenção é trabalhar por meio de grupos de estudo, de compartilhamento comum de dados (em repositório comum e aberto), de produções coletivas e de reunião de esforços para busca de apoio financeiro para arquivos e circulação de professores, pós-doutorandos, alunos e bolsistas de pós-graduação entre as diversas instituições, ampliando o alcance da pesquisa e de seus resultados”, diz Facchinetti, que, no fim do ano passado, apresentou o trabalho sobre a fábrica INTEC em evento do Instituto de Estudos Latino-Americanos (LAI) da Universidade Livre de Berlim, destacando a relação transnacional entre a América Latina e Alemanha. 

Fortalecimento das redes de instituições de acervos e pesquisas 

Além de reunir a documentação arquivística e bibliográfica de cerca de mil indivíduos, o projeto segue também as tendências internacionais de abertura e compartilhamento de dados no contexto da pesquisa histórica e contempla a criação de produtos de divulgação científica, como a elaboração de verbetes em português na Wikipédia. São iniciativas, segundo a pesquisadora, que estão intimamente relacionadas à Cátedra Oswaldo Cruz de Ciência, Saúde e Cultura da Unesco, pois o projeto contempla a criação e fortalecimento das redes de instituições nacionais e internacionais de acervos e pesquisas.

O grupo no momento está realizando levantamento de fontes em acervos e arquivos, no Brasil e no exterior, por onde os indivíduos dos dois grupos circularam. Até o momento já foram mapeados arquivos históricos importantes, como fundos do Arquivo Político do Ministério do Exterior, que guardam valiosos documentos sobre a imigração alemã para a América Latina; o Arquivo da Liga das Nações, principalmente o fundo dos refugiados, situado em Genebra, na Suíça; as fichas migratórias de diversos membros dos dois grupos de refugiados, localizados em Berna, no Schweizerisches Bundesarchiv; e um valioso material no Vaticano, constituído por milhões de documentos.

No Brasil, as pesquisas estão concentradas no Rio de Janeiro, São Paulo e Minas Gerais. No Rio, a equipe desenvolve as etapas de identificação, levantamento e seleção de material em instituições como a Biblioteca Nacional, onde se encontram bibliografias dos intelectuais dos dois grupos e sobre esses refugiados e jornais de época; o Arquivo Nacional, onde há um dossiê de imigrantes advindo da Ilha das Flores, em especial as fichas consulares, lista de passageiros de vapores e processos de naturalização; o Arquivo Histórico do Itamaraty, que guarda a documentação do Brasil com a Igreja referente às negociações de migração desses grupos com diplomatas na Europa. Além disso, a pesquisa será levada para o Arquivo da Cúria Metropolitana. Em São Paulo, a pesquisa se concentra no arquivo histórico do Museu Judaico de São Paulo. E, em Minas, o principal arquivo para a pesquisa é o Arquivo Público Mineiro.