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O périplo científico de Oswaldo Cruz para legitimar a ciência brasileira

18 ago/2022

Cientista apostou no intercâmbio com a comunidade internacional e tornou instituto de Manguinhos, no Rio, referência em medicina tropical

   Arte:Silmara Mansur   

Ilustração com Oswaldo Cruz e as viagens que ele fez para divulgar a ciência, em 1907

Por Karine Rodrigues

No início do século 20, fazer uma viagem internacional exigia muita disposição e paciência para enfrentar meses sem pisar em terra firme. Oswaldo Cruz que o diga. Especialmente em 1907, quando protagonizou um périplo científico por países da Europa e da América do Norte, voltando ao Brasil só no ano seguinte. Desembarcou com a medalha de ouro que o país conquistara na exposição do 14º Congresso Internacional de Higiene e Demografia, primeira parada do percurso, e trouxe contatos valiosos para a legitimação da ciência brasileira.

Oswaldo Cruz começa a estabelecer relações com essa ciência internacional de ponta em um contexto muito vivo, de inovações científicas

Oswaldo Cruz sabia da importância de estreitar laços com cientistas estrangeiros antes mesmo de se tornar diretor-geral do Instituto Soroterápico Federal, em dezembro de 1902, e de ser nomeado para a Diretoria Geral de Saúde Pública, em março do ano seguinte. Tanto que permanecia se correspondendo com os pares da época em que se especializara em microbiologia no concorrido Instituto Pasteur, em Paris. Depois, seguiu investindo nessa aproximação, em busca de uma relação acadêmica de mão dupla com outros países, pois almejava que ciência aqui produzida não fosse mera repetidora do que se fazia lá fora.

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“Se você vivia na Alemanha, na Inglaterra, enfim, em um grande centro, com tradição científica muito forte, já existia uma interlocução muito próxima, mas Oswaldo Cruz estava no Brasil, na periferia, um país que acabara de abolir a escravidão. Então, ele fazia esse movimento de aproximação com cientistas de outros países. Não sozinho, mas liderava esse movimento”, observa Ana Luce Girão, pesquisadora da Casa de Oswaldo Cruz (COC/Fiocruz).

Uma instituição científica com áreas de produção, ensino e pesquisa 

Situado na Fazenda Manguinhos, zona norte do Rio de Janeiro, o Soroterápico – rebatizado de Instituto Oswaldo Cruz (IOC), em 1908, e, mais adiante, em 1974, Fiocruz – fora criado para responder à crise sanitária causada pela chegada da peste bubônica ao Brasil, em 1899, produzindo soros e vacinas contra a doença, mas Oswaldo Cruz queria, além de responder às demandas da saúde pública, investir em pesquisa e ensino, como fazia o Instituto Pasteur. Caso contrário, dizia ele, seguiríamos como “repetidores teóricos do que se estuda e se escreve no estrangeiro”, destaca Jaime Larry Benchimol, pesquisador da COC/Fiocruz, em Manguinhos, do sonho à vida. A ciência na Belle Époque, livro qual narra as origens e a trajetória das primeiras quatro décadas de vida da instituição.

Segundo Benchimol, as relações com cientistas e centros de pesquisa internacionais foram de “vital importância para o amadurecimento e a legitimação” da instituição que, sob a direção de Oswaldo Cruz, se tornou o principal centro de pesquisas da América Latina dedicado ao estudo das doenças tropicais. Ele buscava fomentar uma conexão com a sociedade científica estrangeira, por meio de várias iniciativas, como “manter os pesquisadores do instituto sempre atualizados com as publicações científicas internacionais, colaborando com artigos” em períodos respeitados “sempre que possível” e enviar materiais relacionados às doenças tropicais para instituições renomadas, como o Instituto Pasteur, Museu Britânico, Institutos de Higiene de Heidelberg e o de Moléstias Infecciosas de Berlim, Escolas de Medicina Tropical de Hamburgo, Londres e Liverpool.

A relação entre Oswaldo Cruz e pesquisadores do Pasteur fez vir ao país, em 1901, uma missão de cientistas do instituto, interessados em investigar os mecanismos de transmissão da febre amarela, tema que, mais adiante, em 1904, trouxe também um grupo da Alemanha, de Hamburgo, ampliando a visibilidade internacional do país.

Mudança na maneira de lidar com a saúde pública

“Oswaldo Cruz começa a estabelecer relações com essa ciência internacional de ponta em um contexto muito vivo, de inovações científicas”, observa Nara Azevedo, pesquisadora da COC/Fiocruz, acrescentando que a saúde pública demonstrou como a ciência funciona na prática, impactando a vida das pessoas e sendo útil ao desenvolvimento do país.

Turma de alunos de curso do Instituto Oswaldo Cruz com Oswaldo Cruz, Adolpho Lutz e Carlos Chagas
Chagas, Oswaldo Cruz e Lutz com alunos do curso do IOC, em 1916. Foto: Acervo Fiocruz.

Segundo ela, ao chegar à Diretoria Geral de Saúde Pública, Oswaldo Cruz empreendeu uma mudança na maneira de lidar com a saúde pública: “Essa atuação dá a ele o nome que tem até hoje, de grande sanitarista, ou, como se dizia à época, higienista”, diz a historiadora, autora de Oswaldo Cruz: a construção de um mito na ciência brasileira, no qual discorre sobre o lugar que o cientista, nascido há 150 anos, ocupa no imaginário nacional.

Nara cita momentos em que essa interação foi fundamental na trajetória profissional do cientista. O primeiro deles se deu durante os estudos em Paris, quando Oswaldo Cruz entra em contato com os cientistas franceses e de outras nacionalidades, uma vez que o Instituto Pasteur recebia pessoas do mundo inteiro. Outro destaque foi o período como Diretor Geral de Saúde Pública, quando realiza a exitosa campanha contra a febre amarela, novidade mundial e mote do Brasil no 14º Congresso Internacional de Higiene e Demografia, em Berlim, em 1907. Além do sucesso das ações de combate à doença, o convite para participar do evento se deu, sobretudo, “pelos vínculos que Oswaldo Cruz já criara com os mais importantes institutos europeus de medicina experimental e que haviam tornado Manguinhos mais conhecido na Europa do que no Brasil”, escreve Benchimol.

Convite do Nobel de Medicina para escrever sobre malária

Ainda sob o impacto da premiação principal do evento, Oswaldo Cruz foi comunicado pelo governo brasileiro que deveria seguir para os Estados Unidos, para um encontro com o então presidente Theodore Roosevelt (1858-1919). Foi um trajeto longo, cansativo e repleto de paradas, iniciado em junho de 1907, mas o cientista aproveitou o quanto pode visitando centros de vanguarda nos estudos de microbiologia. Saiu de Berlim, rumou para Hamburgo e, de lá, Nova York, onde visitou um instituto de pesquisas médicas fundado por John Rockefeller (1839-1937). Depois, em Washington, encontrou Theodore Roosevelt, a quem afirmou estar o Rio de Janeiro livre de febre amarela. O cientista ainda participou da 3ª Convenção Sanitária Internacional das Repúblicas Americanas, em dezembro, retornou para Nova York, parou em Liverpool e, depois, seguiu para Paris, desembarcando no Rio no início de 1908. Ufa!

A parada em Liverpool representou outro momento importante, avalia Nara. Na ocasião, ele foi recebido pelo médico britânico Ronald Ross (1857-1932), diretor da Escola de Medicina Tropical de Liverpool e ganhador do Nobel de Medicina de 1902 pela descoberta da forma de transmissão da malária. Mais adiante, Ross convida o brasileiro para escrever um dos capítulos do livro A prevenção da malária, de 1910, que reúne as maiores autoridades internacionais no tema.

Feito inédito não só para um cientista da periferia

A rede de pesquisadores de Manguinhos foi se ampliando. E o feito do médico mineiro Carlos Chagas (1879-1934), anunciado à Academia Nacional de Medicina, em abril de 1909, causou grande agitação no meio científico. Ele descobrira uma nova espécie de protozoário, batizado Trypanosoma cruzi, em homenagem a Oswaldo Cruz, e nova doença: a Tripanosomíase americana ou doença de Chagas. “Era uma coisa inédita naquele momento, não só para um cientista da periferia”, frisa Ana Luce.

Prédio em construção na Fiocruz
Pavilhão do Brasil na Alemanha exibe descoberta da doença de Chagas. Foto: Acervo Fiocruz.

A descoberta foi a tônica da apresentação do Brasil na Exposição Internacional de Higiene realizada em Dresden, na Alemanha, em junho de 1911, também citada por Nara como outro momento importante para Oswaldo Cruz e os pesquisadores IOC. “Entre 1907 e 1912, há uma grande exposição e interação internacional, pois, a partir desses congressos, eles conhecem muita gente, estabelecem trocas. Era muito mais complicado, não tinha internet, era por cartinha ou viagem de navio, durante meses, para lá e para cá”, destaca Nara.

Oswaldo Cruz também buscou fortalecer contatos com a comunidade científica internacional por meio do intercâmbio dos pesquisadores para fazer estágios e estudos de aperfeiçoamento em países como França, Estados Unidos e Alemanha. O movimento inverso também existia. Em 1908, por exemplo, Oswaldo Cruz contratou dois professores da Escola de Medicina Tropical de Hamburgo, Stanislas von Prowazek, e G. Giemsa, para dar cursos e publicar os resultados de suas pesquisas nas Memórias do Instituto Oswaldo Cruz.

Concepção moderna de cientista

Segundo Nara, a completa transformação na instituição, do momento de sua criação até a morte de Oswaldo Cruz, em 1917, se deu com o movimento que, embora constituído por uma rede de pesquisadores, era liderado pelo cientista. “Ele traçava as diretrizes da instituição, do que deveria ser feito, de quem deveria estar ali, das relações que se estabeleceram”, pontua.

A insistência de Oswaldo Cruz em tornar a instituição em Manguinhos um lugar não só de produção, mas também de pesquisa e ensino se mostrou um grande acerto. “A partir do ensino, eles vão construindo e reproduzindo um pensamento científico, uma maneira de abordar a saúde pública e mesmo a ciência no Brasil. Essas pessoas estavam disseminando em outros lugares, em outras instituições, esses ideais que aprenderam ali. E aí se cria no Brasil uma concepção moderna do que era um pesquisador, um cientista”, finaliza a historiadora.