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Das galerias fotográficas às impressões digitais, história do registro pessoal revela resistências e preconceitos

28 out/2021

Doutor pela COC/Fiocruz investigou a institucionalização dos métodos de identificação criminal e civil no Rio de Janeiro no início do século 20

Ilustração: mãos negras seguram grades de uma prisão. Sobre a imagem, marcas de impressões digitais. à direita, a foto de um homem negro. Uma mão branca aponta para ela.

Por Karine Rodrigues

Se hoje ter documento é essencial, a ponto de um indivíduo sem carteira de identidade ser visto com desconfiança, quando novos métodos de identificação pessoal despontaram no Brasil, há pouco mais um século, foi um quiproquó.

A urgência da temática do registro pessoal se relaciona com uma série de problemas dos dias atuais, como o racismo e a imprecisão do reconhecimento fotográfico após uma ocorrência de crime, provocando a criminalização de determinados segmentos sociais por causa da sua origem, cor da pele ou local de moradia

“A partir do momento em que se começou a divulgar a ideia de que as pessoas deveriam ser identificadas na polícia com os mesmos métodos e da mesma forma que os indivíduos que eram presos, independente de sua posição social, houve resistências”, relata o historiador André Luís de Almeida Patrasso.

Como, então, o processo de identificação por meio das impressões digitais, fonte de tanta contestação, tornou-se, com o tempo, algo “natural”? As respostas, que Patrasso buscou durante o doutorado no Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde da Casa de Oswaldo Cruz (COC/Fiocruz), estão reunidas na tese É ou não a defesa social? Polícia, Ciência e identificação criminal no Rio de Janeiro, 1899-1915, defendida este ano.

Apesar da longa distância temporal, o assunto tem um pé na realidade de hoje. “A urgência da temática do registro pessoal se relaciona com uma série de problemas dos dias atuais, como o racismo e a imprecisão do reconhecimento fotográfico após uma ocorrência de crime, provocando erros judiciários e a criminalização de determinados segmentos sociais por causa da sua origem, cor da pele ou local de moradia, o que afasta cada vez mais a identidade – e a identificação – da cidadania”, enfatiza Patrasso em sua tese.

André Luís de A. Patrasso
André Luís de A. Patrasso. Foto: Arquivo pessoal.

Ele se refere a histórias de inocentes presos nos últimos anos no Brasil, após reconhecimentos inadequados, erros de identificação, depoimentos de policiais, nem sempre amparados por investigações, e criminalização de determinados segmentos sociais, especialmente negros e pobres, como apontam reportagens realizadas por veículos nacionais, como Folha de S. Paulo e TV Globo.

Patrasso investigou o processo de institucionalização de métodos de registro pessoal para fins criminais e civis no Rio de Janeiro entre 1899 e 1915, a partir do Gabinete de Identificação e de Estatística da polícia. O período escolhido abrange desde a criação do primeiro serviço de identificação criminal até a desarticulação da Escola de Polícia, que sistematizava os dados reunidos na coleta de impressões digitais.

O historiador privilegiou a questão técnica e os seus impactos na sociedade, analisando como novos mecanismos de registro pessoal e os instrumentos desenvolvidos para aquele fim foram percebidos pelos policiais do Rio de Janeiro, pela população carioca, por políticos e pela opinião pública, assim como por pessoas e instituições da América do Sul e da Europa com quem mantinham contato.

Medições do corpo e coleta das ‘papilas dérmicas digitais’

Até meados do século 19, tanto no Brasil quanto em outros países, suspeitos e criminosos reincidentes eram identificados por meio da memória dos policiais, da descrição de terceiros e das galerias fotográficas.  Até que o francês Alphonse Bertillon (1853-1914) lançou mão de uma pitada de racionalidade para resolver o problema. Criou um sistema, ao que deu o nome de Bertillonnage, que englobava uma classificação baseada nas medidas corporais dos detidos, chamado antropometria; o maior número possível de características do indivíduo, como cor do cabelo e dos olhos e marcas particulares; retrato falado e fotografia de frente e perfil.

“O sistema foi adotado em diversos países. Mas isso não quer dizer que automaticamente a memória dos policiais, a descrição física – e veja que Bertillon desenvolveu técnicas referentes ao chamado ‘retrato falado’ – e as ‘galerias de ladrões conhecidos’ deixassem de ser utilizadas para o reconhecimento e captura de suspeitos e criminosos reincidentes”, observa o pesquisador, contando que não existia uma simples substituição de métodos, feita de forma consensual.

Enquanto o sistema francês ganhava o mundo, estudos sobre a identificação baseada em impressões digitais pipocavam aqui e ali. Entre os mais conhecidos, estavam os do inglês William Herschel (1833-1917) e do croata radicado na Argentina Juan Vucetich (1858-1925). Embora a datiloscopia argentina tenha encontrado muitos apoiadores no Brasil, que destacavam a sua simplicidade, objetividade e uma eventual ausência de questões morais e vexatórias, posto que seria necessário apenas sujar os dedos de tinta, ela não foi adotada de forma exclusiva. Passou a ser incorporada em consonância com aspectos do Bertillonnage, como o retrato de frente e de perfil e o retrato falado.

Segmentação social nos registros

Para conseguir a adesão da população ao registro, os defensores do método usavam justificativas técnicas, observando que o uso de impressões digitais e da fotografia tornaria a distinção dos indivíduos mais eficaz. Também lançavam mão de argumentos funcionais, uma vez que pessoas devidamente investigadas poderiam “comprovar a sua honestidade” diante de situações de possíveis “erros judiciários”, relata Patrasso.

O olhar privilegiado para as interações de diferentes grupos envolvidos no processo fez o historiador perceber, por exemplo, que ao visar determinados segmentos da sociedade, a ideia de defesa social abriu espaço para a exclusão e preconceitos. Embora os apoiadores da identificação civil obrigatória insistissem que o registro deveria ser para todos, independentemente de gênero, condição social e nacionalidade, Patrasso encontrou no discurso de alguns desses interlocutores uma segmentação social. “Na identificação de empregados domésticos – chamados de ‘criados’ – e de imigrantes pobres [..] por eles considerados – tão somente por sua origem social – criminosos em potencial”.

Segundo o historiador, o objetivo da identificação criminal e, para muitos interlocutores, da identificação civil, era criar bancos de dados com todos os possíveis suspeitos e criminosos reincidentes.

“A ampliação da identificação criminal e a identificação civil possuíam no seu escopo uma população específica: as chamadas “classes perigosas”. Pessoas detidas por contravenções, principalmente embriaguez e vadiagem, estrangeiros e trabalhadores domésticos, considerados por muitos desses interlocutores ladrões em potencial. No caso dos crimes políticos, nesse momento, os estatutos não previam a identificação dos suspeitos por serem considerados crimes de baixa periculosidade”.

Permanências e novidades nas pesquisas sobre polícias

Além de revelar a complexidade da institucionalização desses métodos, o historiador identificou – em publicações, correspondências, viagens de estudos e congressos – conexões que apontam para uma circulação de saberes e do conhecimento. Em linha com a perspectiva do historiador das ciências Kapil Raj, Patrasso faz um contraponto à concepção difusionista, na qual há uma mera transferência de ideias e práticas de um centro produtor e irradiador de conhecimento e tecnologia para locais periféricos.

A ampliação da identificação criminal e a identificação civil possuíam no seu escopo uma população específica: as chamadas 'classes perigosas': pessoas detidas por contravenções, estrangeiros e trabalhadores domésticos, considerados por muitos desses interlocutores ladrões em potencial

Segundo ele, outro propósito da pesquisa foi demonstrar pontos que permanecem ao longo do tempo, como a precariedade do trabalho policial, a baixa valorização dos seus profissionais e a interferência da política no seu dia a dia. “É importante destacar as escolhas políticas que, há muito tempo, dirigem poucos investimentos para a segurança pública, tanto na formação dos seus quadros, quanto nas suas condições de trabalho. [Nota-se] também a escolha pela permanência da via repressiva na condução do seu cotidiano, o que acaba refletindo obstáculos da própria sociedade, como o preconceito, a criminalização da pobreza, desigualdades sociais e de gênero”, analisa.

Conhecer a história da institucionalização de métodos de registro pessoal para fins criminais e civis pode causar impacto no cenário atual, no qual erros judiciais deixam na cadeia inocentes durante anos? O historiador entende que sim. Avalia que pesquisas como a que realizou apontam novidades, mas também revelam problemas permanentes, que são fundamentais para alertar políticos, gestores públicos e toda a sociedade sobre a situação analisada.

“O historiador francês André Burguière diz em um de seus textos que o papel do historiador é reter do passado para fins de pesquisa os aspectos que ele deseja compreender e justificar na sociedade do seu tempo. A pertinência da pesquisa sobre a polícia, o seu trabalho cotidiano e, sobretudo, a identificação criminal está estreitamente assentada em muitas das questões a que assistimos hoje na mídia e à nossa volta”, diz Patrasso.