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“O louco é um trabalhador a menos”: a higiene mental e o controle em nome do progresso

07 out/2019

“A higiene mental foi utilizada como forma de controle social em nome do progresso e do desenvolvimento das sociedades latino-americanas modernas. Serviu para estigmatizar os desajustados sociais e para criar projetos e leis que os taxariam de improdutivos e antissociais”. Esta afirmação foi feita pelo psicanalista chileno Mariano Ruperthuz em sua palestra sobre a higiene mental em seus aspectos transculturais e transnacionais e seus usos como instrumento de controle social em países latino-americanos, como Chile, Argentina, Peru e Brasil, que foi tema do Encontro às Quintas do dia 19 de outubro.

O pesquisador situou o fortalecimento do movimento de higiene mental no período entre as duas Grandes Guerras, no início do século 20. Os princípios higienistas trouxeram uma renovação discursiva que se tornou objeto de disputas sociais, tanto nos Estados Unidos, berço do movimento, e na Europa, onde se encontravam os psicanalistas e pesquisadores mais conhecidos da época, como na América Latina, onde as ideias dos autores internacionais sobre o tema foram rapidamente disseminadas.

Ruperthuz explicou que a transferência de conhecimento de um país para o outro não se deveu unicamente à importância de sua base epistemológica, mas à preexistência de um repertório de referências capaz de fazer as novas ideias aderirem à experiência social local.

A expansão e circulação do pensamento higienista em diferentes países da América Latina é parte de sua história transcultural e os conceitos de higiene mental serviram para a organização de uma linguagem social estratégica para a sociedade latino-americana.

Com base nos pressupostos da higiene mental, segundo o pesquisador, implementou-se uma nova visão antropológica sobre o ser humano, concebido em termos de um sujeito marcado pela evolução e pela dicotomia entre natureza e educação: “Isso levou à ressemantização de imagens sociais sobre a doença mental, crime, família, papéis de gênero e infância, criando novos padrões emocionais”, ressaltou Ruperthuz.

A higiene mental construiu um discurso em que a coletividade teria mais valor que a individualidade.

Como os higienistas associavam enfermidade à perda econômica, foram criados instrumentos e mecanismos para medir, testar e descobrir “o débil mental” e a predisposição à debilidade mental, que impactariam os recursos públicos. “O louco é um trabalhador a menos”, ponderou o pesquisador, parafraseando o pensamento higienista.

Além da desordem mental, a higiene se relacionava com outros enunciados, buscando prevenir doenças físicas associadas à ordem social, à educação moral, ao patriotismo e à degeneração coletiva da raça. O projeto higienista previa não apenas o cuidado médico, mas a educação generalizada dos pressupostos higienistas para permitir a detecção precoce de condições associadas à ignorância e a doença. Assim é que “extrapolando a esfera pública, pais de família eram incentivados a fazer uma ‘investigação eugênica’ nos futuros cônjuges de seus filhos e professores convertiam-se em instrumento de controle da infância”, concluiu Ruperthuz.