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Encontro às Quintas: Doenças ligadas a carência alimentar afligiam população goiana no século 19

01 abr/2015

A imagem cristalizada no imaginário popular sobre Goiás – de uma região em que há fartura de alimentos e mesa cheia – oculta um passado difícil de privações. Quem hoje visita o Estado em busca de uma das especialidades locais – o empadão goiano, preparado com carne, frango, guariroba, azeitona e uma série de outros ingredientes que denotam fartura – pode não imaginar que em um período anterior uma parcela significativa da população passava fome. A constatação é da historiadora Sônia Maria de Magalhães, pós-doutoranda do Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde da COC, convidada do primeiro Encontro às Quintas de 2015.

“Essa imagem de Goiás relacionada a uma mesa generosa é muito difundida”, declarou a pesquisadora em sua apresentação, baseada no livro Males do Sertão, resultado de sua tese de doutorado, que aborda a relação entre alimentação, doenças e a elevada incidência de deficiência mental e má formação congênita na então província no contexto do século 19. “Esse presente de fartura oculta um passado muito duro de privação alimentar”, explicou Sônia, que é professora da Faculdade de História da Universidade Federal de Goiás (UFG).

Para entender as relações entre alimentação e enfermidades em uma época em que não se sabia o que causava as doenças e tampouco se conhecia o conceito de vitaminas, Sônia cruzou diferentes dados: os registros de óbitos passados pelo Hospital de Caridade de São Pedro de Alcântara, mapas diários de dietas e receitas feitas para os enfermos, a documentação das entradas e saídas de pacientes, além de relatos literários feitos por viajantes estrangeiros. Além disso, a pesquisadora estudou a atuação de três médicos: Vicente Moretti Foggia (1801-1892) e os doutores (1816-1897) e (1815-1884).

“Percebi que, em todo o período que abordei, houve fome em Goiás. A corrida para os matos [em busca de comida] era constante”, disse Sônia, lembrando que esse problema perpassou o século 19 e ainda era enfrentado no começo do século 20. “Era muito interessante ouvir as pessoas de lá dizendo que não havia fome, pois havia a fartura do cerrado. Mas se um homem é chamado sempre a voltar a sua condição primária, que é caça e coleta, não estaria havendo fome?”, questionou.

De acordo com ela, os políticos justificavam de várias formas a escassez de alimentos. Especulação, seca, chuva em excesso, ausência de técnicas e “falta de braço” foram alguns dos argumentos utilizados ao longo dos anos. Os estudos feitos pela historiadora relevaram que uma combinação de fatores debilitava a saúde da população local. “A pesquisa demonstrou que os verdadeiros males do sertão eram alimentação banal e insuficiente, multiplicidade de doenças, população desamparada pelo governo e ausência de qualquer política de assistência à saúde”, afirmou.

Expedições constataram incidência de doenças em Goiás

Em sua apresentação, Sônia comparou as avaliações feitas por membros de duas expedições a Goiás. A primeira foi Comissão Exploradora do Planalto Central do Brasil, encarregada, no século 19, de demarcar o local para onde deveria ser transferida a capital do País, conforme estabelecia a Constituição de 1891. Na ocasião, o médico higienista Antônio Pimentel, que integrava o grupo, avaliou que a província era um “verdadeiro paraíso”, apesar das doenças lá existentes.

Essa percepção contrasta com a visão de integrantes de uma outra expedição empreendida 20 anos mais tarde por Arthur Neiva, pesquisador do Instituto Oswaldo Cruz. “[Com essa expedição, ocorreu] justamente o contrário. Goiás era [vista como] um verdadeiro inferno de Dante. Num período muito curto, Goiás foi rebaixado do céu ao inferno”, declarou a Sônia.

Em função disso, a revista Informação Goiana, publicação editada por intelectuais de Goiás radicados no Rio de Janeiro, lançou um grande debate criticando o relatório de Arthur Neiva e Belizário Penna. “Havia interesse de projetar Goiás no cenário nacional, pois a província ainda vivia uma condição periférica […] A forma como Penna e Neiva estavam se posicionando rebaixava mais ainda essa condição de Goiás”, explicou a autora.