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Português foi idioma da ciência na Índia do século 18, diz pesquisador da EHESS

01 set/2014

Johann Baptist Homann/Homann Heirs  

Mapa antigo mostra o sul da Índia

Por Glauber Gonçalves

Escritos em um idioma europeu, saberes e práticas científicas do sudoeste da Índia puderam circular globalmente na metade do século 18. Diferentemente do que se poderia imaginar, a língua em questão não se trata do inglês e tampouco do francês, mas do português. A importância do idioma de Camões como uma língua científica naquela época foi o tema da apresentação do pesquisador Kapil Raj, da Escola de Altos Estudos em Ciências Sociais (EHESS) de Paris, no Encontro às Quintas de 14 de agosto.

O processo de globalização, até mesmo depois que os portugueses foram embora, continuou a operar através desse idioma. A língua foi apropriada por pessoas que não tinham nada de português, quando já não existia mais a presença dos portugueses lá

“Quando olhamos para a história da ciência fora dos grandes centros, vemos que o português é um idioma científico e tecnológico”, declarou. Raj se debruçou durante meses sobre um manuscrito botânico, produzido em Anjengo (Índia), que está sob a guarda do Museu de História Natural de Londres. Seus estudos buscaram entender por que a peça foi escrita em português e como esse conhecimento circulou naquele período.


   Kapil Raj
   Kapil Raj. Foto: Vinicius Pequeno
 

Em suas passagens ao longo da costa asiática, os portugueses legaram o seu idioma a diversas partes do continente. Na metade do século 18, centenas de línguas eram faladas na Índia, o que dificultava a comunicação entre os colonizadores de outros países europeus e as comunidades locais, que não dominavam o inglês. Diante dessa dificuldade, o português passou a ser utilizado no diálogo entre os colonizadores e os moradores da região, mas também entre os próprios europeus de outras nacionalidades.

De acordo com Raj, o idioma não apenas sobrevivia na Índia, mas também se desenvolvia. Muito além de uma língua franca, o português era a linguagem do conhecimento, da diplomacia, da ciência, utilizado pelos ingleses na celebração de contratos na região, e no qual foram escritos textos botânicos.

“O português é algo sem o qual o mundo não funciona na Ásia [nesse período].  O processo de globalização, até mesmo depois que os portugueses foram embora, continua ainda a operar através desse idioma. A língua é totalmente apropriada por pessoas que não tem nada de português, quando já não existe mais a presença dos portugueses lá”, declarou Raj. “Esta é a negação do papel periférico de Portugal”, sentenciou.

O conhecimento “científico” europeu e os saberes “locais”

O pesquisador afirmou que, para que os conhecimentos circulassem, não era necessário que as pessoas viajassem, mas que fosse escrito em um idioma que pudesse ser compreendido por outras sociedades ou traduzidos para outras línguas. “É claro que Salvador [um dos envolvidos na produção do manuscrito] nunca saiu de Anjengo […] Mas ele fazia parte de uma comunidade global, com uma consciência enorme do que era o global, mesmo sem ter saído daquele local, da sua região”, disse Raj.


   Desenhos de plantas indianas
   Hortus Malabaricus. Imagem: Natural History Museum.

Raj destacou que o manuscrito, acompanhado de ricas ilustrações, traz não somente uma lista de ervas, mas também o modo de preparação e a posologia, o que o diferencia de outros textos desse tipo produzidos na época. “Foi escrito por alguém que sabia o uso de cada planta”, explicou o pesquisador.

Escrito com a grafia da época, um dos trechos do manuscrito diz: “Esta árvore se chama, em português, árvore de gralha. Em malabar, se chama alimo […] É muito grande. Debaixo de sua sombra, em roda, se podem assentar 200, 400 pessoas. Sua fruta é vermelha […] Quem tiver dores de dentes tomará o leite que sai do corpo desta árvore a modo de goma. E esfregando algumas vezes, tira a dor”.

Em sua apresentação, Raj também abordou as interações entre o conhecimento europeu, que segundo ele é considerado “científico”, com os saberes indianos, ditos “locais” e não teorizados. “Esse conhecimento é local no sentido de que está situado em algum lugar, mas não é local porque não pertence somente a uma pequena comunidade. É um conhecimento que foi construído através de inputs de uma série de diferentes locais, que foi atualizado o tempo todo”, explicou.