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A “cultura da sobrevivência” e os desafios da saúde pública na América Latina

15 out/2013

Marcus Cueto
“Cultura da sobrevivência” foi marcada por descontinuidade
e fragmentação institucional, disse Cueto. Foto: Roberto Jesus

A visão de que a saúde não é um direito dos cidadãos levou à implementação de uma série de ações isoladas e programas efêmeros que não buscavam tratar a doença de forma efetiva. Em vez disso, estigmatizavam e culpavam os pacientes. Esse panorama, realidade de diversos países latino-americanos em meados do século 20, foi descrito pelo historiador Marcos Cueto, no Encontro às Quintas do dia 3 de outubro. Pesquisador visitante da Casa de Oswaldo Cruz (COC), ele falou sobre o que chama de “cultura da sobrevivência”.

“Esse entendimento limitado da saúde era parte de uma cultura que assumia que a população de baixa renda deveria apenas sobreviver, e não planejar sua vida no longo prazo, levando em conta a saúde, a qualidade de vida e o direito à cidadania, à educação e à saúde pública gratuita e de qualidade”, declarou o historiador da Universidad Peruana Cayetano Heredia. O conceito de “cultura da sobrevivência” é uma dos pilares do livro que ele escreve com Steven Palmer, da Universidade de Windsor (Canadá), a ser publicado pela Cambridge University Press.

As características dessa cultura eram visíveis nos programas de erradicação das epidemias nas áreas rurais, explicou Cueto. Segundo ele, nesse período houve exagerada confiança nas novas tecnologias médicas, entre as quais o DDT, pesticida usado no combate ao mosquito transmissor da malária. Pressupunha-se que uma solução encontrada para enfrentar determinado problema poderia ser utilizada indistintamente em diferentes contextos, sem a necessidade de adequação às particularidades culturais e sociais locais.

Cueto afirmou que essa concepção foi sustentada por uma comunidade transnacional de atores sanitários com escritórios em Genebra, Washington e Rio de Janeiro, que desenvolveu um vocabulário comum, com termos como “doutrina”, para muitos dos programas de erradicação, o que lhes permitiu reforçar suas motivações, sobretudo econômicas, para os programas de saúde. “Seus programas eram um subsídio indireto para empresas farmacêuticas da Europa e dos Estados Unidos, onde era produzida a maioria dos produtos médicos consumidos pela população mundial do século 20”, disse.

Menosprezo à ciência dos países periféricos

Uma visão associada à “cultura da sobrevivência” era a de que os médicos das nações periféricos não tinham a capacidade de produzir sua ciência e sua tecnologia e, por isso, precisariam receber esses conhecimentos de outros países. Os Estados Unidos, em contrapartida, viam-se destinados a ser uma grande potência médica mundial e enxergavam os profissionais médicos latino-americanos como subdesenvolvidos.

“Essa leitura reforçava a noção de que a ciência, pelo menos a boa ciência, vinha sempre do exterior, dos países mais desenvolvidos e era simplesmente implementada nos países subdesenvolvidos. Além disso, achavam que as populações rurais latino-americanas deviam receber apenas o que era enviado pelas metrópoles e abandonar suas crenças na medicina tradicional”, explicou o historiador.

A “cultura da sobrevivência” foi marcada ainda pela descontinuidade e pela fragmentação institucional, de acordo com Cueto. Diante da dificuldade de combater as enfermidades a que tinham se proposto, muitos programas tiveram suas metas revistas para baixo e seus prazos postergados. Para ele, essa característica impediu a construção de sistemas de saúde abrangentes e integrados na região, que colaborassem para a melhoria das condições de vida da população carente de maneira coordenada.

Saúde na adversidade

Um contraponto à “cultura da sobrevivência” buscava programas abrangentes, horizontais ou holísticos. Essa corrente, que tem sido chamada por Cueto e Palmer de “saúde na adversidade”, promovia as lideranças populares, que procuravam fazer intervenções não efêmeras e resistiam à cooptação pela cultura dominante no âmbito da saúde. Embora não tivesse teor marxista, essa concepção defendia que o Estado deveria promover a igualdade de oportunidades, tendo a saúde pública como prioridade.

Ele ressaltou, no entanto, que um problema com os promotores da “saúde na adversidade” foi sua crença na existência de um dilema entre a promoção da saúde e o controle de doenças. “Achava-se que a saúde entendida como a ausência de doenças era um conceito limitado, ideia que estava equivocada. Não foi lido com atenção o famoso primeiro parágrafo do preâmbulo da Constituição da OMS […] que diz que a saúde não é somente a ausência de doenças, […] e não levamos em consideração que significa as duas coisas, a ausência de doença e prevenção”, afirmou.

Cueto defendeu uma integração entre a “cultura da sobrevivência” e a saúde na adversidade. Para ele, a melhora da saúde pública na América Latina passa pela produção de conhecimentos em História da Saúde.