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Educação Sanitária, estudos de atitudes raciais e psicanálise na trajetória de Virgínia Leone Bicudo (1910-2003)

10 maio/2011

O Encontro às Quintas do dia 28 de abril foi especial. Reuniu quatro palestrantes, os pesquisadores Cristiana Fachinetti, Marcos Chor Maio, Maria Angela Moretzsohn e Tânia Maria Fernandes, para abordar trajetória de Virgínia Bicudo, filha de italiana e pai de origem escrava com atuação profissional como educadora sanitária, visitadora psiquiátrica, socióloga, psicanalista e professora universitária.

 

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Da esq. para dir. Cristiana Fachinetti, Marcos Chor Maio, Maria Angela Moretzsohn e Tânia Maria Fernandes. Foto: Roberto Jesus

Na abertura da sua palestra, Tânia Fernandes contou que o tema do Encontro trouxe-lhe alguns argumentos novos sobre a educação sanitária. “O trabalho da Virgínia Bicudo está articulado às bandeiras de luta da educação sanitária, que ao longo do século 20 incorporou novos conceitos de educação à saúde, ligados à higiene e eugenia”. Ela explica: “nas décadas de 1920 a 1940 a educação sanitária está articulada à ideia de se acabar com os males do Brasil, então entendia-se que era preciso valorizar o indivíduo e torná-lo moderno, saudável e civilizado”. O indivíduo era culpabilizado por suas marcas hereditárias, então a solução estava nas mãos dele, eximindo o Estado da responsabilidade pelas ações de saúde pública.

Segundo Tânia Fernandes, na década de 1960, considerava-se que os indivíduos marginais, favelados ou pobres estavam predestinados a serem violentos, então separava-se o capacitado do não capacitado. Mas como resolver essa questão? Ajustava-se ou isolava-se o problema? Nesse momento o foco das políticas públicas é a criança, porque ela é o futuro do país, foi quando começam a surgir serviços específicos. Por exemplo, a Liga Brasileira de Higiene Mental vai formar educadoras, que conforme o modelo de saúde americano vão se tornar visitadoras sanitárias e depois visitadoras psiquiátricas. Elas vão aplicar testes psiquiátricos para avaliar as personalidades e mudar o comportamento dos desajustados.

Foi na década de 1970, continua Tânia, que “a Escola Nacional de Saúde Pública Sérgio Arouca teve papel importante nessa história, trabalhando conceitos de educação para a saúde, saúde coletiva e saúde pública. O pensamento do educador Paulo Freire é incorporado à discussão”. Freire é autor de um método de alfabetização dialético que valorizava a formação de consciência do indivíduo através da educação popular.

A outra palestrante, psicanalista Cristiana Fachinetti considerou que a leitura do livro Atitudes Raciais de Pretos e Mulatos em São Paulo, organizado por Marcos Chor Maio, teve a qualidade de trazer-lhe de volta uma questão que não havia fechado na sua tese de doutorado, ou seja, “como os modernistas pensavam a ideia do novo” (O movimento modernista, que aconteceu na primeira metade do século 20, considerava fundamental a criação de uma nova cultura, queria uma ruptura estética na literatura e nas artes em geral. O livro Macunaima do escritor Mário de Andrade, telas da pintora Tarsila do Amaral e Casa Grande e Senzala do escritor Gilberto Freyre foram obras da época).

Fachinetti falou que os modernistas “foram totalmente influenciados pela psicanálise. Na verdade a herança do Modernismo foi constituir a identidade a partir do íntimo do brasileiro, pois as culturas européia e americana recalcaram os nossos modelos íntimos, a verdade brasileira”. “Eu aproximei meus estudos dos psicanalistas, médicos, higienistas, que estavam usando a psicanálise para disciplinar a população, por exemplo, a ideia da higiene profilática em relação à doença mental se baseava no entendimento de que se todo doente mental é pervertido sexual, sendo possível utilizar a psicanálise para reprimir e educar os seus instintos. Outras medidas eram os conselhos dados a pais e crianças, como proibir uso de chupetas, roer as unhas, dormir com os pais, etc”.

Mas houve resistências, pois parte dos psicanalistas percebeu que a psicanálise deixou de ser instrumento educativo. E a Virgínia Bicudo tinha essa visão: a psicanálise como ciência pedagógica, completou Fachinetti.

Virgínia percorreu o seguinte caminho ao longo da sua vida profissional. Em 1938, Bicudo graduou-se em ciênciais sociais pela Escola Livre de Sociologia e Política (ELSP), e interessou-se pela psicanálise. Ao ser criado o Serviço de Higiene Mental Escolar da Secretaria de Educação do Estado de SP neste período, ela tornou-se visitadora psiquiátrica, função que cuidava da prevenção e tratamento de problemas psíquicos da criança. Simultaneamente passou a lecionar as disciplinas Psicanálise e Higiene Mental na ELSP. Em 1945, ela defendeu sua dissertação de mestrado na ELSP, sob a orientação do sociólogo Donald Pierson, intitulada Estudos sobre Atitudes Raciais de Pretos e Mulatos em São Paulo, que versa sobre atitudes raciais, o racismo em São Paulo. Nos anos 1950, Bicudo participou do ciclo de estudos sobre as relações raciais no Brasil conhecido como “projeto Unesco”. Dos anos 1950 em diante se dedicou à institucionalização da psicanálise em São Paulo e em Brasília por meio da Sociedade Brasileira de Psicanálise (SP).

A psicanalista Maria Angela Gomes Moretzsohn conviveu com Virgínia Bicudo, e também com o médico Durval Marcondes, uma das principais autoridades no campo da psicanálise na época. Sendo assim, Moretzsohn fez mais um depoimento do que uma palestra. Ela falou que Virgínia “nasceu num momento em que a figura dela é emblemática”. Era neta de escravo e de imigrante italiana (a avó também chamava-se Virgínia). Os avós vão parar numa fazenda de café em São Paulo. O avô gostava dos livros, participou inclusive da fundação do jornal O Estado de São Paulo. O filho dele, pai de Virgínia, torna-se escravo de dentro (Casa Grande), e o patrão percebendo a inteligência dele, incentiva-lhe a estudar. A mãe de Virginia também trabalhava dentro da Casa como babá dos filhos do patrão. Os dois se casam e vão morar na Vila Economizadora. 

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Maria Angela Gomes Moretzsohn. Foto: Roberto Jesus

Virginia e os irmãos estudaram, mas ela foi a única que progride. “A marca dela é a inquietude”, disse Moretzsohn. O encontro dela com Durval Marcondes e Lígia Amaral, também psicanalista, é fundamental para sua formação.

No entanto, a dor profunda, o sofrimento social por que passou devido à sua origem a acompanham, conforme relatou em entrevista, contou Moretzsohn. A opção pelo curso de Sociologia e Política busca minimizar o sofrimento dela, acrescenta a palestrante. Mas percebe que a Sociologia não amenizou seu sofrimento, a psicanálise, porém, consegue lhe ajudar. E é essa área que vai lhe projetar nacional e internacionalmente.

Moretzsohn contou no Encontro às Quintas detalhes da personalidade de Virgínia. “Ela era muito vaidosa, de certa forma embranquece, usando muitos chapéus e turbantes para esconder o cabelo. Pela sua qualidade de divulgadora nata, fazia ótimas relações profissionais. Quando vai para Londres fica amiga de Melanie Klein, famosa psicanalista da época”. “A questão racial, no entanto, Virgínia só vai retomar na velhice”, afirmou Moretzsohn.

Ao encerrar o Encontro, o coordenador Marcos Chor Maio citou uma significativa frase para definir a personagem abordada: “Virgínia Bicudo não carregou a pele como um fardo”.

 

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Marcos Chor Maio. Foto: Roberto Jesus

Cristiana Fachinetti é psicanalista, tem doutorado em teoria psicanalítica pela UFRJ, pesquisadora e professora do Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde (COC/Fiocruz). Foi editora de um n° especial da revista História Ciências Saúde – Manguinhos Hospício e Psiquiatria na Primeira República: Diagnósticos em perspectiva histórica (2010); escreveu o artigo De barulhos e silêncios: contribuições para a história da psicanálise no Brasil (2003), e o capítulo sobre o psiquiatra e psicanalista Júlio Porto-Carrero, em livro organizado por Lima e Hochman sobre médicos intérpretes do Brasil (no prelo).

 

Marcos Chor Maio é doutor em Ciência Política pelo Iuperj, pesquisador e professor do Programa de Pós-graduação em História das Ciências e da Saúde (COC/Fiocruz). Publicou o livro Nem Rothschild, Nem Trotsky: o pensamento anti-semita de Gustavo Barroso (1992), e organizou seis coletâneas, entre elas Raça, Ciência e Sociedade (1996); Ciência, Política e Relações Internacionais (2004) Raça como Questão: História, Ciência e Identidades no Brasil (2010) e Atitudes Raciais de Pretos e Mulatos em São Paulo (2010).

 

Maria Angela Gomes Moretzsohn é psicanalista com especialização em Psicologia Clínica, e coordenadora da Divisão de Documentação e Pesquisa da História da Psicanálise da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo. Foi curadora das exposições:Freud, Conflito e Cultura – Brasil, Psicanálise e Modernismo – MASP (SP) – MAM (RJ); Um Modesto Sábio Vienense Chega a São Paulo – SBPSP; Freud: 150 anos de nascimento – USP;Virgínia Bicudo: Uma História Brasileira – SBPSP.

 

Tânia Fernandes tem doutorado em História Social pela Universidade de São Paulo (2001), pesquisadora e professora do Programa de Pós-graduação em História das Ciências e da Saúde (COC/Fiocruz). Publicou os livros Vacina Antivariólica: ciência, técnica e o poder dos homens (1808-1920) (2010) e Plantas Medicinais: memória da ciência no Brasil (2004), entre outros.