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Elias Sousa
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“Não vamos eliminar a Aids enquanto houver desigualdade de acesso, preconceito e discriminação”

Referência internacional em HIV/Aids, Paulo Roberto Teixeira fala sobre estratégias que tornaram o Brasil exemplo mundial no combate à doença e chama atenção para os desafios atuais

Karine Rodrigues e Vivian Mannheimer

29 nov/2024

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Nos últimos anos, além da queda na taxa de mortalidade por Aids no Brasil, medidas introduzidas no Sistema Único de Saúde (SUS), como o autoteste gratuito e a Profilaxia de Pré-Exposição ao HIV (PrEP) – medicação que ajuda a prevenir a infecção por HIV antes de uma exposição ao risco –, representaram avanços no enfrentamento à doença. Às vésperas do Dia Mundial de Luta contra a Aids, o sanitarista Paulo Roberto Teixeira, referência internacional na área, destaca, porém, que o país tem ainda muitos desafios, como as desigualdades no acesso ao diagnóstico e ao tratamento e o preconceito.

Teixeira esteve à frente do pioneiro Programa Estadual de DST/Aids de São Paulo em 1983 e coordenou o programa nacional do Ministério da Saúde. Batalhou por um tratamento humanizado e chegou a abrir a casa para doentes de Aids abandonados pela família. Segundo ele, que também dirigiu o Programa de Aids da Organização Mundial da Saúde (OMS) em 2003, foi o desenvolvimento de políticas tendo os direitos humanos e a cidadania como pilares que tornou o Brasil referência mundial no enfrentamento à doença nos anos 2000.

Nesta entrevista, concedida por e-mail, ele analisa a resistência enfrentada no início da epidemia – definida por ele como de caráter moral e discriminatória – e as estratégias que fizeram do Brasil uma referência mundial no combate à doença. Também aborda os desafios atuais, como as desigualdades estruturais que fazem, por exemplo, com que a mortalidade entre pessoas negras seja maior, e aponta que caminhos considera essenciais para a retomada de uma política pública modelo. Para o sanitarista, “a epidemia acabou para a opinião pública, mas não para as milhares de pessoas que continuam morrendo”.  

O senhor liderou um grupo de técnicos da área da saúde que foi pioneiro nas ações de combate à Aids no Brasil, em 1983. Quais foram os principais desafios enfrentados?

Foi uma batalha a nossa iniciativa e houve uma grande resistência a qualquer suporte a pessoas afetadas e ao envolvimento de um serviço público para controlar o que prometia ser uma epidemia. A resistência evidentemente era de caráter moral e discriminatória porque, no início, a Aids se manifestou entre homossexuais. Então, houve uma resistência muito grande que requereu negociação tanto na secretaria de Saúde do Estado de São Paulo como junto ao governo e à imprensa. Alguns veículos, especificamente a revista Veja, escreveu um artigo no qual dizia que o serviço que estávamos inaugurando era tão adequado para o Brasil quanto uma unidade de transplante no agreste de Pernambuco, para se ter uma ideia do tom que foi essa resistência. À medida que a epidemia avançava, começamos a ter problemas de recusa de atendimento por parte da maioria dos serviços públicos do Estado de São Paulo. Então, vivemos uma situação na qual nossos corredores e nossas ambulâncias estavam repletas de pessoas próximas da morte, mas essas instituições se recusavam a atender e a internar um paciente de Aids. Quando montamos o programa, já estava previsto que o Hospital Emílio Ribas daria assistência hospitalar. Tudo era encaminhado para lá. 

Com o tempo e muitos tropeços, gradualmente, o programa de Aids de São Paulo foi se firmando e se tornou referência nacional e, na sequência, referência internacional. Junto com a imprensa e com a sociedade civil, o programa pressionou o Ministério da Saúde, que, três anos depois, reconheceu a existência da epidemia. Foi, então, crescendo o apoio e a organização para o enfrentamento da epidemia no meio médico, principalmente, entre os sanitaristas. 

Quão central foi o entendimento da saúde como direito naquela época e de que forma essa premissa pode nos ajudar no enfrentamento atual do HIV/Aids?   

Todo o debate que promovemos em torno do nosso programa era apoiado nos direitos humanos e nos direitos de cidadania. Foi importante notar como essas duas categorias eram tratadas como lixo pelo país. Desde então, essas são as principais referências do programa e foi a referência que colocou o Brasil no cenário mundial. Isso se agudizou quando começamos a oferecer tratamento medicamentoso aos pacientes de Aids, exemplo que correu o mundo, contrariando organismos como a própria Organização Mundial da Saúde (OMS), o Banco Mundial, a Organização Mundial do Comércio (OMC) e os go Estado vernos de países ricos que entendiam que doentes de Aids de países em desenvolvimento não mereciam tratamento. Desde os primeiros anos, nós começamos a receber representantes de países do mundo inteiro que vinham conhecer o exemplo brasileiro. 

Esta foi a razão pela qual – vou falar na primeira pessoa – eu promovi a criação de um fundo mundial para o tratamento de Aids. E promovi contra todas essas forças em uma assembleia geral, pedindo para que a OMC não punisse países que quebrassem patentes para fazer a produção de medicamentos genéricos. Por tudo isso, fui então convocado para dirigir o programa mundial de Aids, em Genebra. Lá, a minha linha principal de trabalho, além das referências éticas, foi a garantia de tratamento para as pessoas afetadas. Para ter uma ideia, quando conseguimos no Brasil que o governo garantisse o tratamento a todos os pacientes, tivemos uma redução de 80% na mortalidade. 

A premissa da saúde como direito permanece e é o que nos permite manter o trabalho que é feito até hoje, apesar de o país tratar a atenção à saúde e o SUS como uma mera questão comercial. Mas há falhas. Além de morrerem anualmente milhares de pessoas de Aids, registramos milhares de casos de crianças que adquirem Aids por transmissão da mãe, embora existam todos os recursos para que isso seja evitado. O descaso com a saúde pública envolve tudo, inclusive a morte de crianças por Aids. 

E como a sociedade brasileira reagiu diante da epidemia de Aids?

Houve uma reação negativa da sociedade. Tive que levar doentes de Aids para minha casa, que estavam completamente abandonados, pois até mesmo amigos e familiares se negavam a se aproximar deles. Nós tivemos essa imensa barreira que foi o abandono dos pacientes de Aids. Cada vez havia mais doentes que não tinham onde morar e não tinham o que comer. 

Aqui vale um parêntese. Houve pelo menos duas grandes iniciativas em São Paulo que fizeram história. A primeira foi de uma travesti chamada Brenda Lee, que tinha um pensionato e passou a acolher de início travestis e, depois, qualquer doente que estivesse despojado de meio de sobrevivência. A outra foi uma pessoa que começou a receber crianças com Aids, que eram abandonadas pelos pais e pela família e postas na rua. Tornou-se um abrigo e se chamava Casa de Apoio Filhos de Oxum, pois o fundador era praticante da Umbanda. 

Outra enorme barreira foi quando se comprovou a transmissão do HIV pelo sangue. Centenas de pessoas foram contaminadas por essa via, trazendo à vista de todos, com exceção de instituições públicas de referência, que a coleta, a manipulação e a distribuição do sangue eram comércio. Com o auxílio da polícia, tivemos que fechar bancos de sangue de caráter comercial, que faziam tudo sem qualquer triagem, sem um exame de sangue que indicasse que o doador tinha risco de ter o HIV. Era uma prática cruel. No lugar de fazer um exame de sangue para cada bolsa que fosse doada, esses bancos criminosos juntavam pelo menos cinco amostras de sangue e faziam somente um teste, aumentando muitíssimo a chance de haver ali sangue contaminado, que era comercializado com tranquilidade.  

Boletim Epidemiológico do Ministério da Saúde de dezembro de 2023 evidenciou que, apesar da queda da taxa da mortalidade por Aids no Brasil, em 2022, 61% dos óbitos pela doença foram entre pessoas negras. Podemos considerar esses números como o reflexo de um apagamento das discussões sobre as desigualdades estruturais e dos direitos humanos? 

Absolutamente. E não há nem o que discutir a respeito. Como disse, apesar de nós dispormos de todos os recursos para evitar que isso aconteça, o pobre, o o marginalizado, o o negros não têm acesso ao serviço de saúde. E são diagnosticados em fase tardia da infecção. Quando falamos de ainda existirem milhares de mortes, estamos falando dessas pessoas. 

O Brasil foi referência nos anos 1990/2000 em termos de políticas contra a Aids, com tratamento gratuito e esforços para a quebra das patentes. Como isso foi viabilizado na época? 

A questão das patentes foi uma estratégia adotada pelo Brasil e nós trabalhamos por ela no mundo inteiro. Fomos aos lugares mais remotos, promovendo a isenção da quebra de patentes nas barreiras comerciais, com apoio da imprensa e da sociedade civil, até o ponto em que nós conseguimos. É a famosa declaração de Doha Após uma batalha de uma semana, conseguimos que a assembleia aprovasse uma declaração isentando a quebra de patentes das barreiras impostas pela OMC. 

A sua trajetória como médico e gestor inclui uma atuação reconhecida no desenvolvimento de políticas públicas de combate ao HIV/Aids e o exercício de práticas de escuta e acolhimento. É possível desenvolver uma política pública de saúde bem-sucedida sem esse olhar ampliado e inclusivo para o processo saúde-doença? 

De forma nenhuma. E os porquês respondi nas perguntas anteriores. E isto faz com que hoje o programa brasileiro de Aids esteja estabilizado de maneira até burocrática, sem abraçar novos desafios como o que eu descrevi. Tanto no âmbito nacional, veja a história dos óbitos em crianças, como internacional, por meio da exclusão dos países pobres dos progressos obtidos no enfrentamento da Aids. 

Estudo realizado por pesquisadores da Casa de Oswaldo Cruz sobre o período que vai até 2007-2019 aponta que o retrocesso registrado na política pública nacional de HIV/Aids se deu por diversas razões, locais e globais. Para o senhor, quais são os fatores mais primordiais para essa mudança e que caminhos seriam essenciais para a retomada de uma política pública modelo? 

Aí eu tenho que fazer uma declaração de caráter pessoal. Quando dirigi o programa da OMS, o meu compromisso era conseguir completar a estruturação do Fundo 

Todo o debate que promovemos em torno do nosso programa era apoiado nos direitos humanos e nos direitos de cidadania. Foi importante notar como essas duas categorias eram tratadas como lixo pelo país. Desde então, essas são as principais referências do programa e foi a referência que colocou o Brasil no cenário mundial.

Paulo Roberto Teixeira

Sanitarista

Global e e estender o tratamento de Aids para todos os países do mundo. Quando terminei essa tarefa, voltei para o Brasil e minha expectativa era reassumir meu cargo no Ministério da Saúde. Eu fui, sem delicadeza, rejeitado por gestores da Saúde da época, que afirmaram que precisavam de alguém que vestisse a camisa do SUS. Não sei qual era o entendimento deles sobre a minha história de vida. Eu me envolvi na criação e na expansão do SUS quando estava em meu primeiro ano de faculdade. Batalhei por mais de 40 anos pelo SUS. O que os autorizou a sugerir que eu não vestia a camisa do SUS? Sem falsa modéstia, asseguro que a minha exclusão contribuiu para decadência do programa brasileiro de Aids. E como o meu houve muitos outros casos. Isto ocorreu no governo do PT e eu era um petista de primeira hora. 

Então, como retomar este papel de liderança de política pública modelo? Recuperando as experiências que foram construídas em décadas, confirmar o compromisso do governo com o combate à epidemia e pedir perdão. Para o Brasil recuperar o papel de liderança, tem que recuperar a experiência que já foi desenvolvida e acumulada e isso inclui recuperar técnicos e confirmar o compromisso com o setor da população que é afetada e morre de Aids. Para se ter uma ideia do que podemos fazer, em quatro anos, economizamos US$ 2 bilhões para o SUS com a desocupação de leitos e redução de mortes. Se os governantes e as lideranças governamentais prestarem atenção a isso, talvez nós possamos recuperar a dinâmica em que atuamos até então. E quando falo em autoridades governamentais eu me refiro a todas. Do executivo, do Congresso e do Judiciário. 

Uma das características apontadas para o sucesso das políticas de Aids no Brasil foi a parceria com organizações da sociedade civil. Como o senhor vê essa questão? 

Foi essencial. Desde os tempos mais remotos, quando falar em Aids era motivo de repressão, até na contribuição de conteúdos para as ações na fiscalização das práticas médicas e no acolhimento das pessoas afetadas. Essa parceria foi e continua sendo essencial e indispensável. 

Hoje, como já existem tratamentos muito eficazes para a Aids, e é possível “viver com o vírus”, muitas pessoas acham que a epidemia acabou. Quão perto, ou longe, estamos da eliminação da Aids no Brasil? 

A epidemia acabou para a opinião pública. Não para as milhares de pessoas que continuam morrendo. Por mais perfeito que venha um dia a ser o tratamento para Aids, não vamos atingir a eliminação enquanto houver desigualdade de acesso, desigualdade econômica, preconceito e discriminação. E esta é uma pergunta que não é o Ministério da Saúde quem vai responder, é o país como um todo.